Chegou a hora

Acordei. Mais uma vez acordei 10 minutos antes do despertador e está situação começa a ser algo irritante. As 7h50 que marca o relógio parecem algemas que se apertam entre o meu pulso e as barras metálicas da cama. Não sei como fazem, mas parece que sabem as técnicas furtivas de uma alcateia de leoas e conseguem sempre caçar-me antes que eu dê conta da sua presença.

Passaram 3 dias e o menor dos meus problemas são os 10 minutos que perco de sono todas as noites. A custo me arrasto para fora do quarto. A janela não me engana, mais um dia de vento em que tudo parece ir pelos ares. As folhas são arrancadas das árvores que não têm o direito de as deixarem cair. Os pedestres mexem-se, a custo, para chegar ao destino enquanto para os automobilistas é apenas um dia comum onde esperam e desesperam nos sinais vermelhos enquanto ouvem músicas sem sentido e pensam que vão chega atrasados.

São 8h30, finalmente estou pronto. Admito que sou um pouco demorado no banho matinal mas penso que é um defeito aceitável. Pouso um pé fora do alpendre e sou chicotado, tal com todos os outros, pelo maldito vento mas, ao contrário do resto, não estou certo se é ele que me dificulta a mobilidade, existe algo mais. A loira jeitosa que mora em frente claramente escolheu o dia errado para ir ao cabeleireiro. O penteado que fez ontem acaba destruído em 30 segundos. Não é que eu fique chateado com isso, agora parece mais rebelde e atraente.

Hoje estou particularmente alienado da realidade. Caminho em piloto automático, com pensamentos incertos, sem reparar naquilo que me rodeia. Estou focado e concentrado, mas em merda nenhuma. É estranha a sensação de desconforto e impotência. Ao virar da esquina sinto um cheiro agradável que emana da pastelaria flor. A vitrine parece ainda mais gulosa que o habitual e os aromas doces lembram-me do cheiro do teu cabelo molhado. Vou entrar, ainda dá tempo para um café rápido

Estou quase a chegar. São 9h00, os minutos que perdi na pastelaria vão fazer com que chegue, pouco, atrasado. Anseio por entrar dentro de quatro paredes porque este vento me está a matar por isso está na hora de aumentar o passo. 

Ali está a porta! A porta de vidro com as maçanetas prateadas que dá entrada para um pesadelo diário ou um sonho eterno. É só procurar as razões certas e é possível converter a bom em mau e o certo em errado. É incrível como a primeira pessoa que vejo ao entrar és tu. Não me estou a queixar, os meus olhos, o meu coração, todo eu no fundo, agradecem a tua existência todos os dias. Mas hoje a tua visão só me perturba ainda mais. 

Depois de 3 andares e 2 corredores vejo finalmente algo familiar, o meu lugar. Parece tudo tão escuro, alguém acendeu as luzes? Ainda mal me sentei e só consigo ouvir o bater dos teclados, gerando sinfonias ruidosas, tristes e repetitivas. Mal consigo encarar a luminosidade do meu ecrã. Dói-me os olhos, dói-me o cérebro e já vejo o chefe vir na minha direcção. Consigo ver os lábios a mexer mas não ouço as palavras, simplesmente aceno com a cabeça e digo que sim.

Não tenho espaço na minha cabeça para mais nada a não ser tu. Estou apático e paralisado. O fim da linha pode mudar muito a nossa maneira de pensar e nos últimos 3 dias tens sido o centro da minha atenção. Imagino o teu olhar e a tua pele. Quase consigo sentir a vibração do bater do teu coração e o respirar dos teus pulmões quer estejas perto ou estejas longe. É o calor do teu corpo que atormenta a minha realidade. É saber que estás tão perto mas estás tão longe. Preciso que me libertes da agonia qualquer que seja a saída. Eu sei que tu não sabes mas não aguento mais. Quero que saibas que te amo.

F de Final, F de Farto

Estou realmente Farto de Finais. Os tristes, os Felizes, os que nem eles próprios sabem o que são, os que simplesmente não deviam ter existido porque nunca devia ter acabado. É a revolta que se insurge no meu ser e neste momento se Manifesta com gritos, palavras de ordem e cartazes.

Estão na moda estas Manifestações espontâneas de indivíduos descontentes e está na hora de lutar contra o motim que se ergue dentro de mim. Aqui não há polícia, aqui não há grades nem bastões e muito menos balas perdidas. Não há meios nem há vontade, não há como deter estes Manifestantes.   Aqui Forma-se um corrupio de ideias, Efervescendo à medida que as soluções escasseiam, determinadas a destruir e derrotar tudo o que se atravessar no caminho. Estas avançam sem medo, criticando o passado, porque já não têm nada a perder. A minha única hipótese é deixar que este Fogo se extinga por si mesmo, causando o mínimo de estragos.

Quero mais dos Finais Felizes que só acontecem nos livros e dos Finais tristes que estão sempre a acontecer na realidade. É este contraste que nunca encontrei para a minha vida. Nunca Feliz, nunca triste, com Finais e recomeços sem sabor. Existindo, como as ideias em permanente revolução, Confinadas a um corpo móvel de vontade própria incapaz de as escutar.

Parece que tudo está pré-destinado, sem surpresas e sem desgostos, quase Formado de sentimentos. É esta história que vamos querer manter equilibrada, sem que nada aconteça, ou é melhor acontecer tudo? Mesmo quando sabemos que algo Feliz nunca é o Final, existe sempre algo triste que está para vir.

A dicotomia

São muitos os sentimentos que o meu coração expressa na hora do adeus. É um aperto no peito, são tremores nas pernas e suores frios que me deixam debilitado perante a tua presença eterna. Arrepio-me quando sei que estás a chegar, com medo de falhar mas muita vontade de consegui.

É o fim e o início, aquilo que estou neste momento a cruzar. Deixa-me triste ver-te ir e pensar em tudo o que fizemos juntos, foste parte de mim na melhor altura da minha vida, és parte de mim agora e és parte de mim sempre. Mas o relógio marcou as 12 badaladas que não podem mais ser adiada.

Nunca me esquecerei do que aprendi e do que me ensinaste ao longo deste caminho. De tudo quiseste que eu aprendesse e, claramente, não estive à tua altura. Demasiada informação, complexa, existe dentro do teu ser. A tua pele transpira conhecimento, o teu olhar arde em saber e eu, sem capacidade para absorver esse enorme fluxo de sensações, deixei escapar os pormenores importantes.

Deixaste-me realizado, mostrando-me o teu mundo e o outro. É de ti que vou ter saudades quando contemplar o céu estrelado de verão mas é por tua causa que sou quem sou, faltando-me muito para saber e conhecer. O tempo contigo passa a voar, os anos são meses, os meses parecem dias e são mais os dias de chuva que aqueles de sol. Construímos assim a nossa relação sólida, mas sabendo à partida que o fim era inevitável.

Não te consigo explicar, na hora da despedida, se te quero deixar ou se contigo quero ficar. Mas, infelizmente, não sou eu quem pode escolher e tu já fizeste a tua escolha. É o fim.

Foge-Foge

As artimanhas que encontras para escapar são elaboradas como só o teu espírito rebelde consegue criar. Jogos complexos, desejos inversos sobre águas esquecidas e repletos de reflexos estranhos, difíceis de entender, ténues vontades que não deixas escapar por entre a pele que te recobre. 

Para ti, jogar às escondidas, passou a ser uma profissão que exerces sem medo e sem fronteiras. Esguios e manhosos foram os contornos que vi passar quase sem dar conta, fugindo ao meu olhar e contornando os meus outros sentidos. Fiquei sem saber onde te foste esconder, onde desapareceste foste desaparecer no nevoeiro ou mergulhar no oceano profundo.

O rasto foi coisa que soubeste bem cobrir. Sem pegadas nem traços que me indicassem o caminho. Invisível é a única coisa que estou crente em que serás. Invisível na sombra, invisível no sol, invisível neste mundo entrelaçado de correntes e cadeados.

Não estava à espera de te encontrar de hoje para amanhã, mas os anos de procura já me deixaram demasiado exausto para correr. Procuro andando lentamente e com o esforço de quem carrega um lastro interior deixado longe no tempo e longe no espaço. Devagar só para te descobrir, para te encontrar. E se não for agora, vou encontrar-te do outro lado.


Ás vezes o amor não chega

Tudo tem o seu tempo para acontecer, a chuva, o sol, o calor e o frio. Existem épocas para plantar, épocas para regar e épocas para colher. Tudo tem o seu tempo para acontecer. Não são só as estações do ano ou as plantas que seguem um calendário certo, deixando o resto do universo à espera, sem ansiedade, porque todos sabem quando e como vão acontecer. Também os sentimentos têm uma altura para se expressar, a altura certa em que existe a oportunidade de os mostrar de os fazer vencer.


Sou tão mau a avaliar essas alturas como a tentar adivinhar o futuro, mas sei que elas existem e muitas vezes já me passaram por entre os dedos sem eu ter tido noção de que estavam a acontecer. Agora já é tarde de mais para voltar atrás. Ontem alguém, na sua inocência, me perguntava se, caso tivesse oportunidade, voltaria atrás no tempo. Foram apenas segundos de excitação para que a resposta óbvia me saísse pela boca, sim.



As oportunidades perdidas não arrastam os sentimentos. Esses ficam por muito mais tempo, sobrevivendo ao desgaste da distância e lamentando a falta de sentido de oportunidade. É estranho e ao mesmo tempo parvo saber que tudo poderia ter acontecido no momento certo mas que os "pés atrás" deitaram tudo a perder, construindo muros, erguendo barreiras. Agora é tarde demais para amar quem já ama.



A água que cai do céu

As gotas que caem do céu, a chuva, os dilúvios tímidos da natureza e as lágrimas do teu rosto são tudo variantes do mesmo elemento. A água. São elas que alimentam a mais sombria das vertentes humanas, o mais desconfortável dos sentimentos que os animais podem expressar, a tristeza. O ódio sempre suplanta a tristeza em  acções praticadas. As explosividades são mais distintas do que comparadas com qualquer outras das possíveis sensações.


São as vidas que se perdem, são as pessoas que se afastam os usuais motivos do silencio profundo. São aqueles momentos em que nos sentimos inúteis e solitários horas a fio sem que nos apercebamos da escuridão que caminha perante nós, sem vontade de desviar o olhar para a luz, que tornam o renascer a fase mais complexa da edificação da felicidade.

Dá gosto estar assim. Não sentimos que o mundo possa melhor em passos curtos e relevantes. Sentimos que não fazer nada é mais seguro do que fazer o que quer que seja. São enganos permanentes que não controlamos, esperando que alguém os venha controlar por nós, alguém que já não pode vir. É certo que o tempo cura mesmo as feridas mais profundas, mas é preciso que o magoado deixe ser tratado.

O fim ou o início

Foram muitos os meses que passaram sem ver o teu rosto. Mas agora que o posso observar outra vez, reparo que o teu olhar e o teu sorriso não mentem, és mesmo tu. Fazes-me sempre lembrar os tempos de adolescência em que éramos crianças. As tuas expressões e palavras ficaram retidas no tempo, lembrando os tempos passados. Mesmo a forma como "não" queres ficar chateada deixa transparecer a realidade das tuas emoções.

Agora, tenho que reconhecer que muitos dos teu traços deixaram marcas, mas a mulher que foi nascendo suplantou a criança, vencendo o jogo da vida. Isto é o fim, mas também. Um novo começo onde mostras a tua independência e a tua força. Segura para o que vem, de ideias bem firmes foi como te encontrei. De sentimentos construídos ao longo dos anos, sem pressa mas com vontade de novos desafios.


21 Gramas

Vinte e um gramas, o peso da alma Humana. As memórias, recordações, conhecimentos e sentimentos juntos em uma grande abstracção que ninguém ainda conseguiu encontrar, a Alma. A vida, concentrada em zonas obscuras para a ciência mas bem claras para as forças do além.

Ao longo dos tempos vamos coleccionando eventos emotivos e racionais sobre os quais exercitamos uma aprendizagem contínua, construindo a personalidade que nos define. Experiências físicas que despertam o interesse e os sentidos de tal forma que lhes dedicamos toda a atenção. São eventos sentimentais que marcam o carácter do nosso rosto e deformam a pele do nosso corpo. Eventos traumáticos têm a capacidade de reduzir a alma a uma simples essência lançada no ar ou a uma haste de incenso ardendo entre a escuridão. Os eventos racionais são aquelas que refugiam e alimentam quem não tem nenhum dos outros.

A alma, vai sendo moldada por detritos que surgem no seu caminho, crescendo à medida que os absorve, atingindo um estado de maturidade completa sem que o seu portador imagine o que está a acontecer. O espírito é efémero, mas a alma não. Ela fica, guardada, mesmo que o corpo do seu dono se reduza aos minerais dos quais é originário. A alma jaz por entre aqueles que conheceram o seu espírito, por entre as letras escritas pelas mãos escravas ou pelas aparições nominais do seu senhor. Não importa o sítio em que Ela permanece viva, simplesmente quero que recordem os meus 21 gramas de fumo da melhor forma que vos possa ser útil.


Sentido de Orientação

Por estradas, ruas e caminhos, mais estreitos ou mais largos, mais tortuosos ou mais rectos. São as formas que tenho encontrado recentemente para mover-me em direcção ao meu novo destino. Caminhos estranhos onde é difícil discernir zonas próprias que ajudam à orientação. 

Todos os trilhos parecem incertos e um beco sem saída, sem nada que os distinga dos demais e sem nada que os deixe fora do baralho. Durante as viagens decisivas existem sempre aquelas alturas em que nos sentimos algo perdidos ou duvidamos do caminho que seguimos. Parece que, simplesmente, há algo que não está certo, mas não tenho ideia do quê, porquê ou para quê. 

É nessa altura que espero. Avalio as minhas opções como um todo. Se a inversão de marcha é uma hipótese possível ou se o melhor é esperar para verificar onde termina o trajecto actual. Estou na fase do “deixa andar”. Não consigo encontrar a melhor solução para seguir o meu caminho.

Por vezes as escolhas são mais difíceis do que a realização da solução. É a arte de escolher o que está certo que torna difícil a concretização dos nossos objectivos.

Pedra Papel Tesoura

Pedra papel tesoura. São os três vértices de um só triângulo que é este jogo infernal onde só um destes objectos podemos escolher. Qualquer criança saberá dizer que a tesoura corta o papel, a pedra destrói a tesoura e o papel embrulha a pedra. Regras simples, jogo rápido, consequências complicadas.

Queres jogar? Não tem nada que enganar. Vais aceitar o convite com alguma desconfiança mas não te censuro por isso. Os homens são animais de hábitos, de vícios. Qualquer mudança à sua rotina é vista com desconfiança e desagrado. Só quando voltam a construir os seus costumes se sentem de novo confortáveis, até que algo volte a desafiar os seus actos generalizados e prolongados. Passado essa fase, vais sentir a adrenalina correr nas veias com vontade de experimentar o que há de novo. Entendes as normas, começa a contagem decrescente. As dúvidas caem sobre a tua cabeça fazendo congelar os teus pensamentos e decisões, não vais conseguir escolher.

O tempo começa a esgotar-se e tu ainda não fizeste a tua escolha. Retardas ao máximo o movimento do braço para tentar discernir um sinal do adversário que te facilite a escolha. Procuras um pulso fechado, uma mão aberta. Algo. Alguma coisa que ajude a tua decisão mas nada aparece por entre o corpo do adversário. 

Queres ter a certeza que tomas a decisão certa mas isso quase nunca é possível. A certeza matemática está fora de questão porque não tens a capacidade de prever eventos aleatórios. A certeza psicológica nunca terás porque nem tu mesmo tens ideia de onde te estás a meter. Só depois das consequências sabemos se estamos certos ou errados. Mesmo percebendo que estando errados não podemos alterar as nossas decisões e nada nos garante que, alterando, tudo aconteceria de forma diferente.

Ouves o "Já!" e é agora. Só tens 1/3 de hipóteses de acertar mas também apenas 1/3 de hipóteses de errar porque para ficar tudo na mesma mais vale não jogar.

Banda Sonora

Os meus sonhos não têm banda sonora, nunca. Não são nada parecidos com aquelas cenas de cinema onde a sonoridade acompanha as acções e os diferentes ângulos alternam ao som da música. as personagens parecem embebidas no cenário falso, simplesmente construído para a ocasião, como se toda a sua vida ali tivesse sido gasta. É tudo tão natural que não parece encenado, parece vivido.
Nos meus sonhos nada acontece  acontece tão fluídamente. Fragmentam-se as cenas consecutivas, sobrepõe-se ao juízo trazendo consigo epopeias impossíveis das quais, enquanto dormimos, nada desconfiamos. Construções incríveis da mente, fisicamente difíceis de executar, que são geradas em fracções de segundo dentro dos meus lençóis, desafiando tudo aquilo que conheço para que eu as possa percorrer desenfreadamente e pensar que são reais.
As cores esbatidas, baças, sempre com os mesmo tons, pintam as paredes , pintam o chão, pintam o céu. Na verdade, quando acordo, tenho sempre a sensação de que todo o sonho está limitado dentro de 4 paredes. Paredes pintadas de cores absurdas como se o mundo fosse um cubo finito do qual não estou autorizado a sair.
As vozes apenas ecoam dentro da minha cabeça. Eu não falo, eles não falam. Penso por mim e penso pelos outros. Invento palavras sem mexer os lábios e respostas sem ter esperar por elas. Aquilo que penso por mim é uma reprodução da realidade, o que penso pelos outros é uma tentativa de adivinhar o seu comportamento.
Os meus sonhos não têm banda sonora, não têm personagens, não têm cenários. Sou eu o construtor de tudo e o mestre do enredo. Os meus sonhos são apenas eu.

Jardins Proibidos

Deixaste-me contente com as tuas promessas de companhia para aquele dia frio onde apenas os nossos corações escaldantes podiam aquecer o ambiente. Esperei a sorrir naquele banco de jardim, gelado, feito de pedra suja e desgastada. Parecia estar ali há anos sem que ninguém se tenha servido dele mas, na verdade, o banco era o meu melhor amigo, o único capaz de suportar o meu fardo. O verde de ervas daninhas manchava o cinzento do granito Era de adivinhar que a orientação para norte não permitia que o banco se visse livre desses parasitas. Não existia uma única erva seca, tudo era verde e fresco naquele lugar onde o tempo parecia estar congelado.

Continuava, à espera, com um prazer de quem espera acordado na cama a hora de levantar. Reparei numa pequena fonte que já quase não gerava a pressão necessária para expelir água. Mesmo estando no inverno dava a sensação de ter chovido pouco por aquelas paragens embora isso contrariasse a minha teoria sobre tudo estar verde, talvez fosse do orvalho.

Aquele lugar, apesar de estranho parecia ter algo de familiar. Tinha mesmo a sensação que já tinha passado por esse momento, por aquele lugar, por aquela espera. Este déjà vu misturou o sentimento de prazer com a estranheza de quem vai cair numa armadilha mas o aproximar da hora do nosso encontro fazia desaparecer qualquer receio que se aproximasse.

Chegou a hora e já não tinha mais que observar naquele lugar por isso esperei... e esperei.


As viagens para fora da minha Terra

Consegues ter a certeza do que acontece amanhã, do sítio que te espera quando tiveres que deixar o conforto do teu mundo, a protecção das tuas paredes ? Eu não tenho.

À frente abrem-se os caminhos irregulares do meu futuro e as passagem para o outro lado, aquele que desconheço, que se apresenta sombrio. É esse o lado que também mais me atrai e no qual anseio estar em breve. chegou a hora da mudança e sinto que é bem vinda. A saturação do reinicio recorrente e do objectivo entendido (não construído) atingiu o limite. Não me consegues seduzir, perdeste toda a emoção porque o tempo é inimigo da novidade e da inexperiência. Os teus cheiros, os teus problemas, as tuas injustiças já não me magoam nem tiram o sono. Muito dizem que encontrar um amor é como despertar, para eles eu respondo que depois de despertar há sempre um adormecer. Eu acordei mas agora tenho os sentidos anestesiados.

O fim está próximo, já consigo sentir as suas consequências. Chegar ao fim da linha é começar a sentir a nostalgia, terminar cada fase e respirar de alívio par ser a última. Recordar cada momento de tristeza num segundo e cada momento de alegria num minuto. Já só tenho, antes de ir, que resolver as pontas soltas para que não haja fantasmas no futuro.

Tudo tem o seu tempo. O teu está a acabar. Só quero arrumar as ideias, limpar os ressentimentos e deixar o que tenho de bom para os que vêm depois. Sei que não vais ficar só, há sempre alguém que te entenda e queria mimar. Olho para eles, esperando por uma oportunidade e digo: Agora é a vossa vez.



O auditório

A vida, um piano de cauda à minha frente, castanho avermelhado. Castanho como este mundo sobre o qual teimo em caminhar chamado Terra. Avermelhado, apenas pelo sofrimento que contem e do qual nunca conseguirei extrair uma simples sinfonia.
Um pequeno banco, feito de um aparente veludo onde, com apenas o passar da mão, sinto que a minha pela é rasgada pelas suas fibras. Tudo isto sobre um soalho de madeira, madeira essa que teria sido um carvalho, carvalho esse que teria sido mais um ser deste planeta chamado Terra, mais uma vida ondulando ao sabor do vento. Agora apenas é madeira, morta, triste, negra, tal como o piano que reside a minha frente.
Tudo isto dentro de um enorme auditório ensurdecedoramente silencioso onde apenas existiam cadeiras vazias para ouvir o que eu não estava apto tocar naquele piano. Cortinas paradas para ver um concerto que nunca se realizaria e portas fechadas para que não penetrasse um pequeno fotão da luz das estrelas. As luzes, essas eram artificiais, tenuemente amareladas, tenuemente dolorosas que queimam a minha pele à passagem do seu brilho destruidor. Destroem a minha visão a partir do instante em que ganham vida para reduzir a minha pupila a um simples ponto.
Que auditório este, fraco, sereno, morto. Apenas contendo uma essência inútil, este piano que sangra por todas as suas teclas e do qual nunca extrairei uma sinfonia.

Prendas e Presentes

É tempo de natal e deixaste a magia suspensas no horizonte. Sei que não fazes por mal, mas é inevitável o rasto doce que o mundo proclama à tua passagem, o mesmo por quem ele suspira na tua ausência. É tempo de dar prendas e presentes e todos, com consciência ou não, parecem estar habituados a este ritual.  É tempo de natal e já não tenho idades para receber prendas. Isso é para as inocentes crianças que deliram com os papéis de embrulho coloridos e os grandes caixotes de papelão.
Todos os anos o Natal chega sempre na mesma altura mas é sempre um corrupio quando tenho que procurar as prendas. Como habitual, tudo fica para a última, como que se o tempo se suspendesse perto do dia 24 para ficarmos a sós com as nossas ideias de ofertas. Mas há um pequeno detalhe, o tempo não pára, não espera por mim. Não gosto de dar prendas, é por isso que tudo sai em cima da hora, sem pensar, sem sentimento. Não sei como os outros não reparam que estas prendas são sempre vazias. Tenho sorte que são inocentes e não só as crianças, os outros também.
Tu não tens direito a prendas, tens presentes. Estes sim não são dados em cima da hora de forma atabalhoada e sem sentimento. Esses posso dar-te a qualquer hora, oferecer-te a cada dia, não preciso de ocasião especial. Os presentes, a presença, a tua presença, o teu ser é a melhor coisa que posso receber este Natal e é disso que tenho saudades com o passar das horas.

A vida por um fio

O frio gélido da noite estava presente em qualquer lado que eu olhasse. As poucas pessoas, encasacadas, os vidros dos carros embaciados, as lojas fechadas nas quais apenas eram visíveis as grades ferrugentas, a condensação do vapor de água que expirava. Tudo isto, fazia daquela uma qualquer noite regular de inverno.
De mãos nos bolsos caminhava rapidamente tentando aquecer-me através do exercício. Mesmo assim, nesse frenesim, sentia os pés adormecidos devido ao ar que penetrava pelas sapatilhas primaveris e mal isoladas. As luzes amareladas dos fracos lampiões de rua deixavam o ar com um tom sépia idêntico às fotografias antigas e pálidas. É a cor que me faz lembrar os tempos dos avós em que todos eram felizes com pouco e alguns contentes com coisa nenhuma.
A cor, o frio e o deserto lívido de ideias, mas formigando de acções, fizeram acelerar o meu coração. Estavas caído no passeio de calçada e o teu sangue quente escorria por entre as pedras. Os gritos, em tanto desespero, eram bem audíveis, ecoavam pelas paredes circundantes e as ideias palpitavam a tanta velocidade que impediam os actos.
Coragem, onde foste? Vendo aquela personagem, tombada no solo, rodeada de pessoas em grande excitação foste logo abandonar-me. A força não apareceu e a estranheza da situação não causou mais do que o aparecimento do medo. Não fiquei para ver como terminou aquela cena. Outros mais aptos que eu conseguiram lidar com o sangue daquele inocente.

O som do Mar


A brisa fresca é premonitória de mais um dia de outono soalheiro à beira mar. Aqui a brisa é diferente, tem um cheiro inconfundível, tem um sabor distinto do outro ar que circula em qualquer outro lugar. Esta brisa é a brisa que vem do mar.
Um dia quero contar quantas gotas de água cabem dentro de ti. Acho que uma boa estimativa seria dizer muitas, mas a verdade é que quero ter mais certezas para poder descrever o tamanho daquilo que vejo. A cor azul das tuas ondas gela a minha presença minúscula junto à fronteira que delimitas. Fronteira que vai e vem ao ritmo da tua vontade e da força da Lua. És enorme, tão grande que nenhum Homem ousou descrever onde começas e onde acabas. És enorme e o melhor sítio para quem quer esconder um segredo porque os teus murmúrios serão sempre imperceptíveis.
Sentada à beira, em contra luz do pôr-do-sol, consigo distinguir a tua silhueta. Com o cabelo apanhado consegues serrilhar a luz que não atravessa o teu corpo, construindo castelos de sombras, longos, por entre os grãos serenos de areia. É fácil saber que és tu. Conheço esse olhar meigo compenetrado no infinito, procurando o que está do outro lado do horizonte, para lá da curva da Terra. Tanta concentração faz-me querer que sonhas em ter asas e voar, atravessar o oceano num bailado de movimentos doces para encontrares o que foi escondido para lá do que a vista alcança. Ter poder para saltares de ilha em ilha a teu belo prazer ou caminhar sobre a água para matares as saudades de casa.
O sol, quente, a brisa, fria. Criam no teu rosto um misto de sensações. O mar, suave, a terra, rígida, criam no teu coração os sentimentos que murmuras aos meus ouvidos, tal como o som do mar sussurra os segredos que lhe foram confiados. A ondulação molha os teus pés ciclicamente arrefecendo os teus sentimentos, fechando as tuas feições belas para dentro de ti mesmo e dirigindo o teu olhar para a areia. Grito para continuares a olhar em frente porque quando prendes os teus olhos no espelho de água eles brilham com o reflexo de luz e enfeitiçam o meu mundo.
Estou longe, no limiar mal definido de onde acabam as rochas e começa a areia, mas consigo sentir a brisa do mar a ser dulcificada pela tua presença e o ouvir som das ondas formando uma melodia ao teu compasso. Para ti, o mar já não parece enorme. Ao teu lado parece minúsculo porque o conheces tão bem como a ti própria, porque ele, é apenas uma parte de ti.

Crime


Ainda hoje penso sobre o crime que cometi. Longos anos passados mas ainda estão presentes memórias, não esquecidas, desse dia. Agora, relembro-as, abraçado à escuridão e ouvindo o chorar da chuva que bate nas caleiras. Era um dia equivalente ao que hoje vivo, frio, triste, o dia perfeito para conceber as acções das quais hoje me arrependo.

Os impulsos, instintos animais, tomaram conta dos meus movimentos. Tentava resistir com todo o meu vigor mas, mesmo assim, todos os esforços foram em vão. A força da natureza tem tanto poder sobre a nossa íntegra consciência que não conseguimos resistir. Deixei-me ir, sem vontade para opor-me, mesmo sabendo o que estava prestes a acontecer. Não queria voltar para trás, não queria deter as minhas mãos, não queria prender o meu coração.

Tinha obrigação mas não sou capaz de recordar os pormenores desse momento tão marcante. Durante noites tive sonhos e pesadelos com a expressão do teu olhar naquele momento. O poço sem fundo que eram os teus olhos, o sorriso rasgado pelo teu rosto e a tua pele quente de desassossego tornaram aquele momento tão mais prazeroso que não soube como reagir. O crime ficou apenas consumado por metade.

As razões para o incompleto nem sempre parecem claras depois de tanto tempo. Se muitas coisas podem mudar apenas num segundo, muitas mais mudam certamente numa vida. As minhas mudaram tão rápido que não tive tempo de guardar uma recordação e apenas guardei um arrependimento. Tu estavas lá, viste o que eu vi e eu vi o que tu viste. Ouviste. Sentiste. Aconteceu. Tu foste minha cúmplice, aliada e parceira. Sem reacção aos meus gestos e, ainda, incentivando os meus actos. A partir desse dia ganhei um peso na consciência e uma marca no coração e espero que tu também.

Coisas do inverno


Faltam 38 dias para começar o inverno e, infelizmente, os dias quentes de outono, como o de hoje, fizeram-me lembrar disso. São típicas as normais depressões de inverno que tantos dizem cair durante os dias de frio e de poucas horas de sol. A verdade é que, em certa medida, gosto do inverno. Os dias ventosos que obrigam ao dobro do esforço para andar contra o vento, o frio de rachar em que dá vontade de abraçar aquela pessoa especial para nos aquecer a mão, para nos aquecer o coração.

Não sinto, ao contrário de outros, a necessidade de chamar pela altura do ano que faz subir os termómetros. Os dias, quando mais pequenos que as noites, também têm o seu encanto. Só nessa altura conseguimos reparar como é bom o bater do sol que aquece a nossa pele nas horas matutinas sobre a gélida Terra que mal teve tempo para acordar. Fugimos das sombras quando está sol e do céu aberto quando está a chover. As corridas para não apanhar uma molha que, no final, são sempre motivo de sorrisos.

É fácil entender porque conto os dias para chegar o inverno. Os fins de semana de preguiça no sofá envolto nas mantas. O chocolate quente em frente à lareira, as castanhas assadas, e o cheiro a lenha queimada a pairar no ar. Se há cheiro que me lembre o inverno é o do fumo escuro saído das chaminés. Tenho um novo natal (embora muita da magia já tenha sido perdida) por causa de duas crianças que alegram qualquer momento e nunca deixam que os sorrisos desapareçam. As manhãs passadas na cama quando se consegue ouvir a chuva a bater na janela. As tempestades nocturnas que iluminam os céus com a força dos relâmpagos e petrificam os corpos com o som dos trovões. O casaco pesado que sabe tão bem vestir quando se abre a porta da rua. As esplanadas desertas onde finalmente posso escolher o melhor lugar para tomar a bica que me aquece o corpo e a mente.

Não me chateio com o inverno, basta aproveitar os pequenos prazeres que podemos extrair dele. Porque não tem que ser sempre inverno e não pode ser sempre verão.


Sangue do meu sangue

Vão longes os tempos em que o teu choro deixou de mover-me todas as noites. De olhos abertos, por entre a escuridão, ouvindo o teu sofrimento em forma de som e não entendendo o porque. Com os teus olhos ensopados e a pele enrugada de bebé usavas do teu único instrumento de alerta para chamar a atenção, o choro sempre presente ecoava pelos corredores serenos e propagava a tua dor até aos nossos corações.

A luz acesa à cabeceira escorria pelas frestas da porta entreaberta. O medo do escuro não te deixava sossegar e querias sempre que a noite se transformasse no dia que ia afastar os teus pesadelos. Tão pequeno, tão frágil que me fazias pensar como era possível existir vida dentro de ti.

Só o colo, os abraços, e o som dos outros faziam o teu corpo sentir-se confortável e calmo. Tinhas ar de quem se sente desprotegido e não quer ficar só. Tens ar de quem se sente desprotegido e não quer ficar só. Eras frágil como as folhas que caem no outono à passagem da mais leve brisa, mas agora a posição bípede que ostentas faz-te parecer mais forte e móvel do que antes.

Acabaram os dias de sonos infinitos, de noite e de dia, sonhando com mundo indescritíveis, com abstractos de vontades inconcretizáveis ou simplesmente planeando o próximo dia de vida. Sim! Sonhar é poder dizer que se está vivo. Hoje o choro acabou e crescem em ti os vastos pensamentos que ditarão o ser que serás. Hoje, as vontades sonhadas já podem ser concretizadas.

As corridas em que sempre queres ter companhia deixam o teu corpo cansado e a tua mente feliz. O corpo pequeno que perde o fôlego tão devagar quanto o meu e me deixa a pensar qual a energia que plantaram dentro de ti. És sangue do meu sangue, são sangue do meu sangue. Serão as paixões da minha vida cada vez que entrarem no meu mundo, com os vossos sorrisos, com os vossos abraços tão inocentes e ternurentos. São vocês que eu quero ver a partir do outro mundo porque enterrar um pai magoa muito, mas enterrar um filho magoa muito mais.

Nasceste e estás a crescer, mas não estás só, nunca vais estar. Contigo trouxeste mais uma alma. Essa ainda chora, não fala, mas já ri. Hoje são os vossos risos que se propagam dentro do meu coração.

Solto-te

A luz que entra pelos teus olhos faz-me reparar no brilho que as tuas íris soltam ao expandirem-se para te proteger. Esse brilho, capaz de acender os candeeiros plantados nas bermas do meu caminho agora serve para iluminar as paredes do meu quarto, reflectindo-se no espelho, aquecendo o encosto em que me deito. Não me deixas dormir porque a brisa arrasta o teu perfume mélico em direcção ao meu rosto discreto como a areia que se levanta à beira mar num dia de outono.

Deitada de olhos abertos e coração fechado aprisionas a minha atenção e desfrutas da minha insciência em relação ao teu mundo, às tuas intenções. Apenas sorris para esconder as sensações que, em outros momentos, seriam facilmente discerníveis. Suaves são as linhas que percorrem o teu corpo, visíveis em contra-luz e perfeita é a junção dos teus lábios reflectidos na janela a quando da lenta passagem de uma qualquer nuvem insípida.

Inesperadamente decides levantar-te e caminha sobre os tapetes amenos  onde passeais, pé ante pé, usando e abusando da sensualidade que te foi conferida. Dás a volta ao quarto, acariciando o fundo da cama feito de madeira escura com as tuas mãos delgadas até que, finalmente, me vens confrontar.

Agarro-te, abraço-te e, logo que caio em mim, solto-te. És apenas um sonho.




Cansado

A cabeça pesada, o corpo dorido, as mãos quentes. Isto é apenas a primeira face do cansaço. Aquilo que mais pesa é certamente a mente. Luzes, brancas que ofuscam os meus sentidos e cegam as minhas razões. O nojo dos meus sentidos que já para nada servem, que nem me conseguem levar a encontrar a saída. Perdido de sentidos, é hora de esquecer o que aprendi.

Aprendi que o tempo ajuda a esquecer. Mas aqui não tenho tempo, aqui não quero esquecer, quero encontrar, seja com a razão, seja com o instinto. Fica o instinto para me guiar mesmo quando o cansaço faz perder a verdade.

Verdade que não preciso quando existe um chamamento de maior força para me levam ao fim do caminho. Não te consigo ver nem tocar, mas consigo sentir que existes e isso basta-me para sair a procurar-te. A vontade diz-me que não estás longe e a verdade nada me diz, porque há muito que não existe, há muito que parou de me deixar confuso.

Confuso é diferente de perdido. Aquele que está perdido tem noção de onde quer chegar. Aquele que está confuso nem sabe o sítio em que está. Estou perdido mas não confuso. Estou cansado mas não morto.

Morta está a razão, vivo está o instinto. Instinto que me vai levar até ti.


A Cave


Dos confins do universo saís todas as manhãs com o espírito selvagem que te conheço. Os teus toques de força ficaram gravados no momento do teu nascimento, que aconteciam todos os dias quando a luz resolvia brindar o teu sossego. A tua imagem ficou presente na minha memória, de olhos raiados e garras de fera conseguias provocar-me o medo de quem enfrenta o desconhecido. Não aguentava mais esta sensação de correr para fugir, de viver para sofrer.

Hoje sou eu que nasço da minha cave mesmo que a luz não me venha acordar. Acabou a supermacia dos teus sentidos e o controle dos meus sentimentos. A metado do meu espírito que te pretencia passou a ser terra de ninguém. Finalmente sou liberto, não foi de ti que recebi a liberdade nem a alforria mas os dias de escravidão sobre a tua demanda chegaram ao fim.
As correntes enfraquecidas pela ferrugem são agora fáceis de quebrar, e mesmo que leve o teu perfume comigo já não levo a tua prisão. O tempo de perdição cravou marcas sobre a minha pele que já mais serão apagadas.

Já não te peço, não te louvo, não te idolatro. Não me podes encontrar, agora já não estou perdido na tua cave. Agora o fim do túnel é a minha demanda e à saída já sei o que tenho à espera.




Coimbra


A Cidade dos encontros e desencontros daqueles que chegam e o sítio das lembranças e saudades dos que partem. As tuas pedras e calçadas tantas vezes foram percorridas, em busca da tua essência, por aqueles que sobre a tua luz dormem todas as noites. Dos dias de inverno às noites de verão que deixam um rasto de pessoas por todos os cantos, caídas, alegres e apaixonadas. Nunca ninguém abandonaste, nunca ninguém largaste, Coimbra.

Todos os que olhamos a velha Cabra temos uma paixão escondida nesta Cidade. Paixões intocáveis que não podemos alcançar, nem mesmo nas lágrimas da despedida que vão cair na hora do adeus. Desejos escondidos por entre os pedaços de história, por entre momentos vividos que eu guardo com força na minha mão. Forças encontradas onde menos esperávamos. Com todos estes encontros sou eu que nunca poderia deixar de te encontrar numa relação que será para sempre, Coimbra.

O que para uns são ruas que sobem, para outros são ruas que descem e aqui encontrei de todos os tipos. Ruas sem saída, muitas. Ruas estreitas, algumas. Ruas perdidas pela Cidade que me levaram a ruas largas. Ruas escuras onde não há a luz ao fundo do túnel e a única opção é esperar. Ruas em que espero só pelo prazer de ali estar. Ruas que estão lá para sempre, em Coimbra.

Agora que já conheço essas ruas, sei aquelas onde quero continuar a andar, sei aquelas que já não posso conquistar, não sei aquelas que ainda estou para encontrar. Coimbra uma cidade de cabelos castanhos e vestida de negro com curvas esguias que podia ter qualquer outro nome de mulher.

Flores


Mil flores espalhadas pela calçada dessas ruas estreitas que impedem os altos prédios de se abraçarem ao final da tarde. O aroma que fica concentrado no ar intensifica-se com o amontoado de cheiros que se liberta de cada pétala caída. Essa essência que permanece suspensa quase pode ser tocada pelos meus sentidos e sentida pelos meus toques. Já não é são os vossos cheiros e as cores pintadas pelo chão que me deixam aqui paralisado a olhar para vocês porque já deixaram de ser simples flores para serem simples desejos, uns bem mais simples que os outros.

Mil flores a voarem pelo céu sem sitio para onde ir, sem vontade de chegar. Pairam soltas pelo ar, arrastadas pelo vento, despidas pelo sol e vestidas pelo luar. Fogem-me por entre os dedos velozmente deixando as cores por arrasto e os cheiros por suspenso. Já não têm a mesma magia que antes, tenho que correr para vos apanhar e mesmo assim já não vos consigo tocar.


Uma flor, um sabor desenterrado no meio do nada. Ao fundo do túnel deixou de existir a luz para nascer o deserto. O infinito, o mundo ardente e de cores esbatidas ainda deixa espaço para tu apareceres por entre os grãos de areia amarela. És uma flor imóvel que posso tocar, cheirar e observar sem medo que fujas porque aqui não há lugar para onde ir. És uma flor do deserto e ao mesmo tempo um cacto com espinhos.


Mil Sabores, Formas e Cores... Mil e uma Flores

Noite



Deixa o sol pôr-se e entra pela noite dentro com os mesmo passos com que fechaste o dia e deixaste o sol cair sobre o horizonte. Entraste no reino da Lua por tua vontade sem saber o que ias encontrar, ela vai-te aprisionar perpetuamente com as suas mentiras e as suas provocações. É essa a Lua que não se digna a aparecer quando se intitula “nova”, que desenha no céu um “D” quando Cresce e um “C” quando Decresce.
Entras-te no mundo das luzes. Brancas, vermelhas, amarelas, que, ao mesmo tempo iluminam o mundo e os caminhos, são capazes de cegar se não esperarmos um encontro imediato com os seus segredos. Elas não soltam os segredos como simples confissões, presenteiam-nos quando sabem que já não podemos escapar da sua fúria.
Deixa-te contagiar pelo novo universo que acabaste de descobrir. Há estrelas cadentes por toda a parte, para cá, para lá e tu mal consegues fixar-lhes o rosto. São rápidas e nem dá para entender de onde vêm e para onde vão. Ficas apenas com um pequeno gosto, doce, do que podes descobrir. Queres agarra-las, tocar-lhes, sentir os contornos da superfície e nenhuma delas pára perto do teu abraço.
Não desistes, procuras por toda a parte e tudo é diferente mas tens a sensação de que é igual. Os mesmos gestos, as mesmas atitudes, as mesmas vontades com estrelas diferentes. De mansinho, começas a sentir um calor crescente à tua volta. Uma estrela deixou de ser cadente e parou mesmo a frente dos teus olhos. Sorris, agora podes tocar-lhe.

A casa


Estava perdido. Já não fazia ideia como tinha entrado naquele labirinto de ruas paralelas e perpendiculares e não imaginava como sair delas porque todas me pareciam iguais. Farto de andar as voltas sem encontrar uma saída resolvi para o carro. Andava por uma rua igual a todas as outras, com casas e sem pessoas, com árvores, plantas e flores mas sem ninguém a quem fazer uma simples pergunta: “Onde estou?”.
Abri os vidros e senti o calor tórrido e o sol abrasador que inundava todo o sítio. No instante seguinte soprou uma brisa cortante, não era aquela brisa que refresca nos dias quentes de verão, era sim um ar quente que sufoca. Olhei à esquerda, estava uma casa com a porta aberta e decidi ver mais de perto.
A casa pintada de branco ostentava baixas grades verdes e um pequeno jardim por baixo da varanda em que estava a porta de entrada. Toquei á campainha e enquanto esperava olhei em volta. O jardim não estava só por baixo da varanda, rodeava toda a casa na companhia de árvores e arbustos com frutos de muitas cores e feitios. A mangueira estendida no chão e ainda molhada era seguramente o motivo pelo qual dentro daqueles muros tudo estava verde mesmo debaixo daquele calor intenso.
Farto de esperar abri o portão de ferro, estava um pouco perro e as duas portas do portão rasparam uma na outra. Ouviu-se um barulho de metal a ser limado tal como o ranger de uma porta de madeira. Tinha à minha frente umas escadas de pedra, mármore, que levam à varanda onde se encontra a entrada e em volta um passeio que rodeava a casa ao longo do jardim. Subi as escadas, lá de cima tinha uma melhor visão mas mesmo assim continuava perdido. A porta aberta foi um convite a entrar.
A casa parecia vazia, não se ouvia uma única voz e tudo parecia sereno por isso decidi continuar pelo corredor. Procurei nas salas e no quarto ao longo do corredor mas não encontrei ninguém. A meio um espelho suspendido na parede que parecia de uma época passada e reflectia o meu rosto. A última porta dava entrada na cozinha. Era uma divisão grande e mais parecia uma sala de estar do que um lugar para apenas cozinhar. Ao fundo tinha outra porta para a rua, a porta das traseiras, ouvia ruído vindo de lá e aproximei-me.
Estava uma criança a brincar num pequeno pátio e numa fracção de segundos reconheci-a. Já sei onde estou. Sou eu, e esta é a casa em que sempre vivi.

Praia


Segues em direcção ao sol num dia de verão pelo fim da tarde e o teu rosto é brindado pelos últimos raios de sol e pelo vento do crepúsculo. O cheiro do mar intensifica-se a cada passo que dou e quase consigo provar o sabor salgado que reside no ar. Finalmente, ao dobrar a esquina, ali estava o mar que ainda reflectia a luz do sol remanescente.
O barulho das ondas reflectido pelas rochas tornava o ambiente relaxante o suficiente para adormecer e ao mesmo tempo as areias douradas dão vontade de serem percorridas. Eram poucas as pessoas sentadas naquela língua de areia e muitas delas apenas contemplavam o bater das ondas da maré que ia encher pela noite dentro.
Sentei-me e deixei o sol queimar a minha pele. Estava quente e a sensação de estar vivo era facilmente transmitida apenas com um sorriso. O sorriso não é o suficiente para a maioria das pessoas, mas naquele momento, para mim, era tudo aquilo que tinha e que me fazia sentir bem.
A água fria pedia para ser acariciada pelas minhas mãos. Tinha a certeza que quando me encontrasse com ela era eu a sentir frio e não o mar a sentir calor. Talvez fosse motivo para estar preocupado mas não estava, era mais uma coisa para me arrefecer quando só tinha o sol para acalentar.
Perdi a vontade de provar as ondas do mar e mantive-me sereno junto às rochas que serviam de companhia. O sol baixava devagar e as sombras ficavam mais longas criando um cenário perfeito para sonhar acordado. Tudo acontecia ao ritmo perfeito para ser contemplado.
Caiu a noite e o som do mar permanecia o mesmo. A areia permanecia a mesma, ainda quente emanando o calor acumulado nas horas de sol. Eu era o mesmo, sentado no mesmo sítio ao encontro dos mesmos pensamentos. Levantei-me. O
lhei para trás e vi. Deixaste-me com vontade de sorrir.

Queima


O fogo arde, queima a pele e seca os lábios rosados até perderem a cor que ostentam ao acordar. As brasas aquecem o ar e deitam as cinzas do passado para nos dificultar o respirar. A labareda que ressalta ofusca os olhos castanhos que mesmo assim se esforçam para não deixar de ver. É este o fogo que está dentro de ti.
Consigo vê-lo pelos espelhos da alma mas não lhe consigo tocar porque não deixas. Guarda-lo dentro do teu pequeno pedaço de mundo que já se tornou imune ao seu calor. Tu toda já te tornaste imune á sua soberania e agora és tu que o dominas e não ele que te domina a ti. Gritas que é teu, que o vais soltar para que queime e nem reparas que o resto ainda não está imune. Eu ainda não estou imune.
Quero fugir na hora que o mostro se soltar porque sei aquilo que me vai fazer. Vai-me agarrar, prender, sufocar e necessito que estar pronto para quando o momento chegar. Se não estiver preparado vou acabar ardendo por dentro e derretendo por fora.
Cada segundo que passa em direcção ao momento da libertação faz-me perder um golfo de ar. Sinto-me a sufocar mas consigo continuar firme até ao momento final que não sei quando, nem como, nem se vai chegar. Cá o espero. De frente para ele, para que não me ataque sem que eu saiba quando vem.
Esta mais perto, tenho mais medo, tenho mais receio. Pensava que estava preparado mas no momento em que senti que ia acontecer tremo sem controlo das minhas próprias acções. O fogo que é teu e fazes questão de lembrar está cada vez mais perto de mim. Já consigo sentir uma chama e um calor como nunca tinha encontrado.
O fogo quente que queima e quer continuar a arder dentro de ti e que apenas sair quanto tu deixares começou a queimar o mundo à tua volta e agora, duvido como vais faze-lo parar
.

Palácios Confusos


Lá estavam eles escondidos por entre as ruelas, ocultos na penumbra da noite, rodeados de muralhas sombrias. Quase conseguia sentir a forma como tudo aquilo tinha sido construído e as formas pouco rigorosas que estavam na sua origem. Para sorte minha, o luar tinha desfeito o nevoeiro mas mesmo assim foram muito difíceis de encontrar. Estavam confusos, deixava-me confuso e quando algo confundido tenta encontrar algo confuso não é tarefa fácil.
A entrada nos Palácios Confusos era feita por umas escadas que desciam até ao inferno, ou se preferires que subiam até a terra, tudo depende do sentido em que são percorridas. Escadas gastas, por onde já passaram muitas caminhadas e que não conseguem disfarçar o peso do passado. Por causa de tudo o que já viram, sentiram, encontraram e esconderam consigo entender que têm segredos pesados de mais para uma simples passagem.
Desci as escadas e não sei onde acabei por parar. Uma rua estreita, tapada por muralhas altas que não deixavam entrar a luz da lua de noite nem a luz do sol de dia, embora tanto uma luz como outra sejam exactamente a mesma. O chão era coberto por pequenas pedras que feriam sossegadas sem que nada as importunasse e mesmo depois da passagem de tanto vento, água e fogo ali estavam para cumprir a sua missão.
As ruas construíam um labirinto de caminhos esquecíveis em que nem mesmo as janelas trabalhadas na pedra davam como ponto de referência. Havia luzes de cores invulgares em cada uma das janelas que clareavam as ruas na forma de um arco ires desconcertante que confundiam ainda mais que as tentasse descortinar. Se era fácil ficar confuso antes de entrar então agora era ainda pior.
Dei voltas e voltas até encontrar algo de novo e por fim uma descida acabei por vislumbrar. O que faz uma descida no inferno? Existe algo para lá disto? Não quero saber a resposta, já estou confuso que chegue e quero voltar para a terra.

Ligação


Hoje de manha acordei para apanhar outra vez o comboio como uma criança que vai pela primeira vez em uma visita de estudo. Empolgado, nervoso, entusiasmado porque sabia que ias estar à minha espera no fim da linha. Esse espaço era a última coisa que me separava de ti mas era demasiado grande para ser sustentado durante todos os dias em que não acordava deitado a teu lado.
Liguei-me a ti. A tua voz fluía para dentro de mim por paços mágicos como os sons das cordas de uma guitarra prosseguem pelo ar sem que ninguém os veja mas todos os ouçam. Mesmo quando estas longe eu consigo sentir-te como se descansasses o teu rosto no meu ombro. Não sei porque, mas estou ligado a ti de uma forma estranha e da qual não me quero libertar.
Era essa ligação invisível que criei, que criamos e que ninguém era capaz de explicar, que me fazia sorrir pela manhã mesmo nos dias em que não apanhava esse comboio para te tocar. Não era preciso. Chegava-me os pensamentos partilhados entre ambos e os sonhos que alimentava com a tua a falta da tua presença e com a vontade de te abraçar.
Deixava-mos a nossa ligação tomar conta de tudo e esquecíamos daquilo que era essencial, as ligações não duram para sempre quando não cuidamos delas e nós tínhamos deixado de cuidar da nossa à muito e ainda não tínhamos reparado que ela estava quase a partir. Tentei com força agarra-la tal como tu também tentaste e para mantermos a telepatia viva só juntos o íamos conseguir, para não deixar o comboio parado na estação, para não deixar cair a ponte que estávamos a atravessar, tínhamos que conseguir juntos. Era tarde de mais, não conseguimos.

O outro lado


Estavas sentada junto à janela com os braços sobre o papel onde escrevias. O dia que nascera não me deixava ver as cores que ostentavas porque os meus olhos só captavam a luz do sol. As pernas cruzadas, o cabelo solto, os movimentos suaves que fazias para deslocar o lápis e desenhar um mundo encantado, tudo isto contribuía para me fascinares e cativares a atenção. Eram gestos sem importância, mas a maneira como tu os conjugavas transformava-te numa princesa escondida por entre as muralhas de um castelo. Vivias serena como se nada te perturbasse e até a tua respiração transpirava calma, a mesma calma que tem um canário quando canta seguro no poiso. O sol que enchia a sala aquecia o ambiente e eu sentia o leve cheiro a Verão. Os raios que batiam nas minhas mãos transmitiam uma sensação de conforto que aposto que experimentavas tal como eu. Levantas-te sem ninguém o prever para baixar a persiana e ficaste finalmente exposta ao meu olhar, podia agora distinguir a cor vermelha do teu vestido e os olhos castanhos que brilhavam na tua face. Sem o sol que tinha enchido a sala até então deixei de sentir o conforto que tanto estava a gostar, mas os benefícios de agora não existirem barreiras entre o meu olhar e o teu corpo eram suficientes para compensar todos os danos. Voltaste a sentar-te de volta ao teu espaço, voltaste a pegar no lápis negro e seguiste o traço escrito na folha enquanto me concentrava para descobrir os teus contornos e durante tempo infinito ali fiquei. Durante esse tempo deste-me o perfil do teu rosto e eu acreditei que era todo feito da mesma pele. Deste-me o teu pé direito e eu acreditei que o outro também sabia dançar. Deste-me a tua orelha direita e eu acreditei que a outra também sabia ouvir. Deste-me a tua mão direita e eu confiei que a outra também sabia abraçar. Deste-me a tua perna direita e eu acreditei que a outra também sabia correr para mim. Não me deste o teu coração, infelizmente ele estava do lado escondido, o esquerdo.

Culpa


Deixei cair a noite para saber até quando conseguias manter as tuas mentiras intactas, calado, triste, sem esperança de saber a verdade pela tua boca. A noite continuava a cair até ao ponto em que já estava totalmente enraizada dentro de mim, até ao ponto em que as trevas que trazia já faziam parte do meu respirar, mas a tua mascara seguia fixa Á tua cara e não parecia ter vontade de cair.
Há dias em que nunca nos sentimos bem com aquilo que somos, era um desses dias e qualquer pessoa que me dissesse o contrário era para mim uma imagem vazia. Perdia a vontade de estar acordado, deixava o silêncio apoderar-se de mim, queria dormir. Sozinho, alegre e triste ao mesmo tempo, era assim que a culpa, tua ou minha, se apoderava de mim. Em ti não sei que efeito causava, mas a última coisa que espero que sintas é indiferença porque essa já a dei aos meus olhos por eles estarem farto de responder a perguntas.
Encontrei no teu olhar o gelo da tua culpa, e perdi o calor do teu arrependimento no entanto, não ia ficar à espera da tua confissão. Procurei um espelho para ver quem era e no que estava transformado. Desejei contemplar o mesmo que estava acostumado. Ansiei que a mudança fosse nula. Tive medo do que podia descobrir, mas o sentimento de incerteza estava a corroer os meus sentidos.
Encontrei finalmente. Agoniei antes de ver a imagem. Vi. Estava lá. O meu sorriso, esse mesmo que me acompanha. Porque alguém me disse, “Enquanto alguém te faz sorrir ninguém te pode fazer chorar”.

Distância

Corres, foges, afastas-te do medo que te persegue como o sol foge da lua todas as noites e a lua foge do sol todas as manhãs. Temos medo de tudo o que é desconhecido, de tudo o que não queremos conhecer e de tudo o que não queríamos ter conhecido. Dois destes motivos para fugir não consegues controlar, mas o medo das coisas que já conheces é o que cria a maior distância entre o teu coração e as minhas mãos.
Continuaste a correr sem direcção, só pensavas em desaparecer o mais rápido possível e nunca olhar para trás. Nem te lembraste que talvez não fosse preciso correr e fugir, bastava transformar o medo em indiferença, a indiferença em tolerância e a tolerância em compaixão. Seguiste em frente, dobraste a curva com o desejo de não ter um desgosto devido ao que podia estar do outro lado. Ansiaste que quem te seguia te perdesse o rasto.
Do lado dessa esquina estava uma estrada que parecia não ter fim. Não sabias, mas a única saída que essa rua te proporcionava era a queda num precipício, mas o medo era demasiado para te permitir regressar. O cansaço nos teus olhos e o suor no teu rosto denunciavam a falta de forças que o teu corpo já sentia mas mesmo assim havia uma razão mais forte que tudo para te fazer andar. Agora andas, embora ainda tenhas vontade de correr, porque os teus membros já atingiram o limite.
Os cheiros e as cores dessa jornada eram agora mais nítidos e passavas por eles muito mais lentamente o que fazia com que realmente entendesses o seu significado, de que estavas distante de tudo. Paraste. Estavas ofegante e compreendeste finalmente, não eras tu que te tinhas estado a afastar de todo o mundo, era todo o mundo que tinha sido afastado por ti.

Feitiço


Voltaste-te de frente e o sorriso no teu rosto era inconfundível. Estavas feliz e preenchias o teu corpo com essa satisfação de maneira a que todos a contemplassem e não tivessem dúvidas. Nunca te tinha sentido da forma que estavas hoje, até o perfume que usavas tornava o ar mais doce, até a simples suavidade do teu cabelo molhado me dava motivos para não deixar de te admirar, até o som das tuas gargalhadas fazia em mim o efeito que faz uma flor a uma abelha.
Os teus paços firmes fazem ecoar o som dos teus saltos por entre os labirintos e as gavetas da minha cabeça, as formas do teu corpo fazem desenhos nos quadros da minha alma que a cor dos teus olhos se encarrega de pintar. Não me consigo defender disso, tu entras sem pedir licença e não sais porque eu quero que fiques.
Trocamos sorrisos e olhares tal como dois seres apaixonados trocam cartas de amor, mas nunca passaram de momentos instantâneos e comuns às nossas faces, entrelaçados, finitos. Entrelaçaste o teu sorriso com o teu olhar, mais tarde juntaste-lhes um toque da tua voz e um pozinho do teu sabor e deixaste o mundo à tua volta enfeitiçado. Esse feitiço duradouro deixou-me mais facilmente seduzido.
Por instantes, pareceu ter cativado os teus instintos. Mas cada vez que voltas as costas deixas de enfeitiçar o ar que te rodeia e quebras a magia que me lançaste. É nessa altura que consigo acordar do meu sono e ter a capacidade de reconhecer que o teu feitiço não era para mim, tu enfeitiças tudo aquilo em que tocas.

Envelhecer


Lembro-me dos dias em que trazias um banco, e para ele subias a muito custo, para chegar às gavetas da secretária ou aos livros das estantes. Tinhas o dom de fazer rir simplesmente com as tuas asneiras tal como conseguias passar por baixo da mesa com uma agilidade de um felino jovem que brinca por entre o arvoredo.
Adoravas os baloiços e os escorregas que tantas nódoas negras te ofereceram. Nunca te cansavas de correr e saltar, gritar, rir, andar de bicicleta, bicicleta essa que te fez cair inúmeras vezes só por vingança de lhe teres retirado as rodinhas pequenas.
Mais tarde, quando já deixaste de correr para andar, apreciavas os prazeres da vida de uma maneira única. Sentias cada sorriso das pessoas que amavas como se fosse teu, e cada lágrima como se te saísse do olhar. Não vacilavas porque tinhas força para aguentar tudo o que se metia no teu caminho e para te levantares depois de uma derrota. Mesmo nos dias maus voltavas-te para mim e dizias que o sol voltaria amanhã para nos acordar e na altura não acreditava em ti, mas mais tarde acabava por concordar. Soubeste que se pode amar alguém mais que a própria vida e que o mundo lá fora está sempre pronto para agitar aquilo que estavas a construir.
Depois de teres finalmente construindo o teu império era hora de descansares. Foram as pantufas o calçado que mais utilizaste durante as noites frias de inverno em que te aquecias à lareira. Permitiste que te aparecessem rugas à flor da pele e cabelos, brancos, por entre os poucos negros que iam restando.
Agora vejo eu aquilo que passou na tua vida durante todos estes ano, tudo o que o vento te trouxe e logo te levou no momento seguinte, todos os sorrisos que me deste e o mundo que me oferecias quando estavas feliz. As rugas profundas marcam o teu rosto como a experiência marca a tua alma, a experiência de quem tem muito para ensinar.
Começaste a correr, passaste a andar, acabaste sentado no teu trono que tanto trabalho deu a construir e se for preciso fico parado ao teu lado para sempre só para te dizer que não estas só.

Palavra



Pensa numa palavra, faz uma frase, lê um parágrafo, grita um poema, escreve m livro, constrói um mundo, vive uma vida. Não sei que palavra pensaste quando te pedi que o fizesses mas sei que, qualquer que tenha sido, a escolheste porque sentias falta de a dizer.
Não penses qual vais escolher, em vez disso escolhe a que estas a pensar. Enquanto penses deixas que o fictício se apodere de ti e isso não é o que espero ouvir da tua boca. Sente, escolhe e fala.
Gostava de ter o poder para entrar pelo teu olhar em direcção aos teus pensamentos porque, afinal de contas, os olhos são as janelas da mente e sabem que palavra foste escolher. Encobres os sinónimos dos teus sentimentos por trás dos teus gestos tal como escondes as tuas palavras no cristalino do teu olhar para que ninguém descubra as vontades que confinas no espírito.
Assim é difícil encontrar uma fenda na tua muralha atrás da qual te escondes durante as manhãs que te vejo sorrir e as noites que não te vejo nem te oiço chorar. Quero ouvir-te chorar, quero que cada lágrima tua signifique uma letra da minha palavra. Quero ver-te sorrir, quero que cada sorriso teu seja uma frase para eu usar. Quero ver-te saltar e brilhar, quero que cada salto seja um momento para me inspirar. Quero ver-te olhar, quero que cada olhar seja um mundo para me fazer viver.
Um mundo vale muito mais que uma palavra por isso guarda as lágrimas e encontra o brilho que tens escondido dentro de ti, pois o mundo já tu constróis só por existires.

Silêncio


Fiquei quieto quando gritaste com toda a tua força e quase me espremeste dentro do meu corpo. Continuavas a gritar e toda a tua alma estremecia como as folhas de uma laranjeira num dia ventoso de inverno mas nem isso te fez parar de gritar. Paraste quando te faltou o ar e respiraste.
Depois ficou o silêncio entre os raios de sol que nos separavam naquela manhã bonita de Dezembro. Ninguém foi capaz de fazer soltar mais uma simples palavra da boca para quebrar aquele momento e o silêncio prolongou-se para lá do infinito. Estavas ofegante depois de tanto esforço, no entanto o teu olhar penetrava em mim como quem acaba de acordar e tem um “bom dia” para oferecer, um olhar que me transformou em estátua imóvel que queria dar um passo em frente mas estava congelada.
Continuava o silêncio, mas já não me sentia congelado porque o teu olhar me tinha aquecido e dado vida. O teu olhar, o teu rosto, os teus lábios, as tuas mãos, tu estavas a possuir-me com a tua beleza sem te aperceberes do poder que encerravas. Olhei-te e, desta vez, o sol, que entrava pela janela e nos separava, estava agora atrás de ti para me deixar apenas vislumbrar os teus contornos. Era o suficiente para ter a certeza que queria estar perto de ti.
Continuava o silêncio mas agora estava na hora de me mexer. O teu olhar atraia-me como um doce atrai uma criança e não tive escolha, fizeste-me perder o controlo que o silêncio me tinha conferido. Mexi-me, toquei-te, abracei-te com força e finalmente o silêncio terminou. Agora conseguia ouvir o som do bater do teu coração.

Futuro


O meu passado, o meu presente, o meu futuro. O meu, o teu, o nosso ou até mesmo a falta dele. Aos pedaços, lentamente ou aos trambolhões quero o meu futuro de volta.
Fico sentado, à espreita, à espera, na janela do meu universo enquanto os dias passam e as estações do ano se seguem. Chegam a repetir-se vezes sem conta sempre iguais, sempre da mesma forma, mas mesmo assim não consigo encontrar um caminho para me levar para longe dos meus receios.
Passa o Outono enquanto as folhas caem suavemente sobre o parapeito do meu universo. As folhas que antes foram verdes e sonhadoras agora perderam todas as suas cores e formas porque lhes roubaram as fantasias deixam as suas árvores despidas de beleza. Sei que agora o futuro me trás o Inverno.
Passa o Inverno enquanto os flocos de neve pintam os caminhos de branco e deixam as crianças criarem bonecos de neve que ganham vida na sua imaginação e as fazem sorrir no seu mundo inventado. Sei que o futuro me trás a Primavera.
Passa a primavera enquanto se ouve o chilrear dos passarinhos quando fazem os seus ninhos escondidos por entre a nova folhagem das árvores. Pássaros que, mais tarde, vão aprender a voar e fugir para outras paragens consoante os seus fúteis caprichos de adolescente. Sei que o futuro me trás o Verão.
Passa o Verão com os seus dias quentes enquanto se vê o pôr-do-sol à beira mar e com as suas noites mágicas em que se espreitam as estrelas ao luar. Sei que o futuro me trás o desconhecido porque continuo fechado dentro do meu universo, atrás de uma janela que não abre e com um vidro a separar-me do mundo lá fora.
Quero sair, quero abrir a janela e ir embora para sentir o cheiro das folhas no Outono, o frio da neve no Inverno, o som dos pássaros na Primavera, o calor das noites de Verão, o amor que tenho para encontrar.

A ponte para o nada


Quantas vezes não imaginaste passar a ponte que vês ao longe mas tens medo porque não sabes onde ela vai parar. Eu sei que já imaginaste porque todos nós já o fizemos, muito mais que uma vez.
Parecemos tão pequenos quando ficamos horas a observa-la tentando imaginar onde nos leva, tentando descobrir o que os nossos olhos não conseguem alcançar e qual é o mundo que está no fim desse caminho. Queremos dar o passo em frente sem cair no oceano e sem ficar perdido nos labirintos que conduzem ao centro da terra, mas o medo de tombar na longa viagem é mais forte do que a vontade dos nossos sonhos.
Passávamos dias e dias sonhando com a felicidade que pensávamos estar no fim daquela ponte, sem questionar o dogma que fomos criando e as invenções que fomos fantasiando. Passávamos dias e dias enquanto a esperança, de algum dia ter um sorriso no resto, se ia desvanecendo. Tudo era melhor que estar aqui e tudo era pior do que o desconhecido.
Aquela ponte era a única coisa que nos fazia existir tal como éramos. Talvez já nem existíssemos realmente porque já não sabíamos viver naquele lugar, apenas queríamos fugir. Apenas queríamos ir embora sem pensar no que vinha depois, sem pensar com quem íamos estar, sem pensar se íamos conseguir.
Precisava da luz das estrelas para começar a minha viagem até ao outro mundo porque para nós, aquela ponte era a ponte para o nada, pois o nada era melhor que o nosso tudo.

Esquecimento


Encontro hoje razões para me sentir triste quando vejo aquilo que me deixaram nas mãos enquanto olho o que me deixaram no coração. Não consigo deixar para trás as gavetas que ficaram armazenadas em sítios que pensava perdidos e esquecidos cada vez que tento mudar o meu caminho. Já tentei, já consegui, já voltei, já me perdi. As gavetas vêm e voltam com as coisas que vieram e fico sem saber onde guardar as que vêm, fiquei sem espaço, completo, da mesma maneira que sobem as águas do rio quando a chuva vem e transbordam sem querer saber de ninguém. A minha água já transbordou á muito das margens e agora só o sol a pode vir secar.
Guardei tudo o que podia nas minhas gavetas durante os dias em que julgava estar a construir as linhas dos meus desenhos. Guardei cores e fantasias e juntei lápis com canetas porque tudo sabia tão bem que nunca queria que acabasse. Juntei gavetas e gavetas para nunca mais as perder mas hoje são essas mesmo que quero deitar fora e não consigo. Não consigo abrir espaço para elas saírem, são grandes de mais para estarem guardadas em mim, quero que alguém as venha buscar e leve para longe.
Deixei, esqueci, deitei-me e apaguei a luz para dormir mas não consegui para de ouvir o barulho do silêncio. Era ensurdecedor e não me deixava adormecer. Fez-me levantar. Não conseguia abrir os olhos porque a luminosidade da escuridão era mais forte que a luz do sol. Fez-me fechar os olhos. Deixei de sofre durante o tempo que senti tudo controlado, mas dei por mim em pé, de olhos e gritando para alguém ouvir só que não estava ninguém e ninguém respondeu. Gritava mais alto e não conseguia parar quando a voz começou a doer e o som do grito ecoando na minha cabeça até que o grito parou porque esgotei as vontades que me faziam gritar. O grito parou, mas continuava a ouvir o som sem me aperceber de onde vinha quando notei que nunca tinha sido eu quem estava a gritar, tinha sido o meu coração a impedir-me de cair no esquecimento.