Flores


Mil flores espalhadas pela calçada dessas ruas estreitas que impedem os altos prédios de se abraçarem ao final da tarde. O aroma que fica concentrado no ar intensifica-se com o amontoado de cheiros que se liberta de cada pétala caída. Essa essência que permanece suspensa quase pode ser tocada pelos meus sentidos e sentida pelos meus toques. Já não é são os vossos cheiros e as cores pintadas pelo chão que me deixam aqui paralisado a olhar para vocês porque já deixaram de ser simples flores para serem simples desejos, uns bem mais simples que os outros.

Mil flores a voarem pelo céu sem sitio para onde ir, sem vontade de chegar. Pairam soltas pelo ar, arrastadas pelo vento, despidas pelo sol e vestidas pelo luar. Fogem-me por entre os dedos velozmente deixando as cores por arrasto e os cheiros por suspenso. Já não têm a mesma magia que antes, tenho que correr para vos apanhar e mesmo assim já não vos consigo tocar.


Uma flor, um sabor desenterrado no meio do nada. Ao fundo do túnel deixou de existir a luz para nascer o deserto. O infinito, o mundo ardente e de cores esbatidas ainda deixa espaço para tu apareceres por entre os grãos de areia amarela. És uma flor imóvel que posso tocar, cheirar e observar sem medo que fujas porque aqui não há lugar para onde ir. És uma flor do deserto e ao mesmo tempo um cacto com espinhos.


Mil Sabores, Formas e Cores... Mil e uma Flores

Noite



Deixa o sol pôr-se e entra pela noite dentro com os mesmo passos com que fechaste o dia e deixaste o sol cair sobre o horizonte. Entraste no reino da Lua por tua vontade sem saber o que ias encontrar, ela vai-te aprisionar perpetuamente com as suas mentiras e as suas provocações. É essa a Lua que não se digna a aparecer quando se intitula “nova”, que desenha no céu um “D” quando Cresce e um “C” quando Decresce.
Entras-te no mundo das luzes. Brancas, vermelhas, amarelas, que, ao mesmo tempo iluminam o mundo e os caminhos, são capazes de cegar se não esperarmos um encontro imediato com os seus segredos. Elas não soltam os segredos como simples confissões, presenteiam-nos quando sabem que já não podemos escapar da sua fúria.
Deixa-te contagiar pelo novo universo que acabaste de descobrir. Há estrelas cadentes por toda a parte, para cá, para lá e tu mal consegues fixar-lhes o rosto. São rápidas e nem dá para entender de onde vêm e para onde vão. Ficas apenas com um pequeno gosto, doce, do que podes descobrir. Queres agarra-las, tocar-lhes, sentir os contornos da superfície e nenhuma delas pára perto do teu abraço.
Não desistes, procuras por toda a parte e tudo é diferente mas tens a sensação de que é igual. Os mesmos gestos, as mesmas atitudes, as mesmas vontades com estrelas diferentes. De mansinho, começas a sentir um calor crescente à tua volta. Uma estrela deixou de ser cadente e parou mesmo a frente dos teus olhos. Sorris, agora podes tocar-lhe.

A casa


Estava perdido. Já não fazia ideia como tinha entrado naquele labirinto de ruas paralelas e perpendiculares e não imaginava como sair delas porque todas me pareciam iguais. Farto de andar as voltas sem encontrar uma saída resolvi para o carro. Andava por uma rua igual a todas as outras, com casas e sem pessoas, com árvores, plantas e flores mas sem ninguém a quem fazer uma simples pergunta: “Onde estou?”.
Abri os vidros e senti o calor tórrido e o sol abrasador que inundava todo o sítio. No instante seguinte soprou uma brisa cortante, não era aquela brisa que refresca nos dias quentes de verão, era sim um ar quente que sufoca. Olhei à esquerda, estava uma casa com a porta aberta e decidi ver mais de perto.
A casa pintada de branco ostentava baixas grades verdes e um pequeno jardim por baixo da varanda em que estava a porta de entrada. Toquei á campainha e enquanto esperava olhei em volta. O jardim não estava só por baixo da varanda, rodeava toda a casa na companhia de árvores e arbustos com frutos de muitas cores e feitios. A mangueira estendida no chão e ainda molhada era seguramente o motivo pelo qual dentro daqueles muros tudo estava verde mesmo debaixo daquele calor intenso.
Farto de esperar abri o portão de ferro, estava um pouco perro e as duas portas do portão rasparam uma na outra. Ouviu-se um barulho de metal a ser limado tal como o ranger de uma porta de madeira. Tinha à minha frente umas escadas de pedra, mármore, que levam à varanda onde se encontra a entrada e em volta um passeio que rodeava a casa ao longo do jardim. Subi as escadas, lá de cima tinha uma melhor visão mas mesmo assim continuava perdido. A porta aberta foi um convite a entrar.
A casa parecia vazia, não se ouvia uma única voz e tudo parecia sereno por isso decidi continuar pelo corredor. Procurei nas salas e no quarto ao longo do corredor mas não encontrei ninguém. A meio um espelho suspendido na parede que parecia de uma época passada e reflectia o meu rosto. A última porta dava entrada na cozinha. Era uma divisão grande e mais parecia uma sala de estar do que um lugar para apenas cozinhar. Ao fundo tinha outra porta para a rua, a porta das traseiras, ouvia ruído vindo de lá e aproximei-me.
Estava uma criança a brincar num pequeno pátio e numa fracção de segundos reconheci-a. Já sei onde estou. Sou eu, e esta é a casa em que sempre vivi.

Praia


Segues em direcção ao sol num dia de verão pelo fim da tarde e o teu rosto é brindado pelos últimos raios de sol e pelo vento do crepúsculo. O cheiro do mar intensifica-se a cada passo que dou e quase consigo provar o sabor salgado que reside no ar. Finalmente, ao dobrar a esquina, ali estava o mar que ainda reflectia a luz do sol remanescente.
O barulho das ondas reflectido pelas rochas tornava o ambiente relaxante o suficiente para adormecer e ao mesmo tempo as areias douradas dão vontade de serem percorridas. Eram poucas as pessoas sentadas naquela língua de areia e muitas delas apenas contemplavam o bater das ondas da maré que ia encher pela noite dentro.
Sentei-me e deixei o sol queimar a minha pele. Estava quente e a sensação de estar vivo era facilmente transmitida apenas com um sorriso. O sorriso não é o suficiente para a maioria das pessoas, mas naquele momento, para mim, era tudo aquilo que tinha e que me fazia sentir bem.
A água fria pedia para ser acariciada pelas minhas mãos. Tinha a certeza que quando me encontrasse com ela era eu a sentir frio e não o mar a sentir calor. Talvez fosse motivo para estar preocupado mas não estava, era mais uma coisa para me arrefecer quando só tinha o sol para acalentar.
Perdi a vontade de provar as ondas do mar e mantive-me sereno junto às rochas que serviam de companhia. O sol baixava devagar e as sombras ficavam mais longas criando um cenário perfeito para sonhar acordado. Tudo acontecia ao ritmo perfeito para ser contemplado.
Caiu a noite e o som do mar permanecia o mesmo. A areia permanecia a mesma, ainda quente emanando o calor acumulado nas horas de sol. Eu era o mesmo, sentado no mesmo sítio ao encontro dos mesmos pensamentos. Levantei-me. O
lhei para trás e vi. Deixaste-me com vontade de sorrir.

Queima


O fogo arde, queima a pele e seca os lábios rosados até perderem a cor que ostentam ao acordar. As brasas aquecem o ar e deitam as cinzas do passado para nos dificultar o respirar. A labareda que ressalta ofusca os olhos castanhos que mesmo assim se esforçam para não deixar de ver. É este o fogo que está dentro de ti.
Consigo vê-lo pelos espelhos da alma mas não lhe consigo tocar porque não deixas. Guarda-lo dentro do teu pequeno pedaço de mundo que já se tornou imune ao seu calor. Tu toda já te tornaste imune á sua soberania e agora és tu que o dominas e não ele que te domina a ti. Gritas que é teu, que o vais soltar para que queime e nem reparas que o resto ainda não está imune. Eu ainda não estou imune.
Quero fugir na hora que o mostro se soltar porque sei aquilo que me vai fazer. Vai-me agarrar, prender, sufocar e necessito que estar pronto para quando o momento chegar. Se não estiver preparado vou acabar ardendo por dentro e derretendo por fora.
Cada segundo que passa em direcção ao momento da libertação faz-me perder um golfo de ar. Sinto-me a sufocar mas consigo continuar firme até ao momento final que não sei quando, nem como, nem se vai chegar. Cá o espero. De frente para ele, para que não me ataque sem que eu saiba quando vem.
Esta mais perto, tenho mais medo, tenho mais receio. Pensava que estava preparado mas no momento em que senti que ia acontecer tremo sem controlo das minhas próprias acções. O fogo que é teu e fazes questão de lembrar está cada vez mais perto de mim. Já consigo sentir uma chama e um calor como nunca tinha encontrado.
O fogo quente que queima e quer continuar a arder dentro de ti e que apenas sair quanto tu deixares começou a queimar o mundo à tua volta e agora, duvido como vais faze-lo parar
.

Palácios Confusos


Lá estavam eles escondidos por entre as ruelas, ocultos na penumbra da noite, rodeados de muralhas sombrias. Quase conseguia sentir a forma como tudo aquilo tinha sido construído e as formas pouco rigorosas que estavam na sua origem. Para sorte minha, o luar tinha desfeito o nevoeiro mas mesmo assim foram muito difíceis de encontrar. Estavam confusos, deixava-me confuso e quando algo confundido tenta encontrar algo confuso não é tarefa fácil.
A entrada nos Palácios Confusos era feita por umas escadas que desciam até ao inferno, ou se preferires que subiam até a terra, tudo depende do sentido em que são percorridas. Escadas gastas, por onde já passaram muitas caminhadas e que não conseguem disfarçar o peso do passado. Por causa de tudo o que já viram, sentiram, encontraram e esconderam consigo entender que têm segredos pesados de mais para uma simples passagem.
Desci as escadas e não sei onde acabei por parar. Uma rua estreita, tapada por muralhas altas que não deixavam entrar a luz da lua de noite nem a luz do sol de dia, embora tanto uma luz como outra sejam exactamente a mesma. O chão era coberto por pequenas pedras que feriam sossegadas sem que nada as importunasse e mesmo depois da passagem de tanto vento, água e fogo ali estavam para cumprir a sua missão.
As ruas construíam um labirinto de caminhos esquecíveis em que nem mesmo as janelas trabalhadas na pedra davam como ponto de referência. Havia luzes de cores invulgares em cada uma das janelas que clareavam as ruas na forma de um arco ires desconcertante que confundiam ainda mais que as tentasse descortinar. Se era fácil ficar confuso antes de entrar então agora era ainda pior.
Dei voltas e voltas até encontrar algo de novo e por fim uma descida acabei por vislumbrar. O que faz uma descida no inferno? Existe algo para lá disto? Não quero saber a resposta, já estou confuso que chegue e quero voltar para a terra.

Ligação


Hoje de manha acordei para apanhar outra vez o comboio como uma criança que vai pela primeira vez em uma visita de estudo. Empolgado, nervoso, entusiasmado porque sabia que ias estar à minha espera no fim da linha. Esse espaço era a última coisa que me separava de ti mas era demasiado grande para ser sustentado durante todos os dias em que não acordava deitado a teu lado.
Liguei-me a ti. A tua voz fluía para dentro de mim por paços mágicos como os sons das cordas de uma guitarra prosseguem pelo ar sem que ninguém os veja mas todos os ouçam. Mesmo quando estas longe eu consigo sentir-te como se descansasses o teu rosto no meu ombro. Não sei porque, mas estou ligado a ti de uma forma estranha e da qual não me quero libertar.
Era essa ligação invisível que criei, que criamos e que ninguém era capaz de explicar, que me fazia sorrir pela manhã mesmo nos dias em que não apanhava esse comboio para te tocar. Não era preciso. Chegava-me os pensamentos partilhados entre ambos e os sonhos que alimentava com a tua a falta da tua presença e com a vontade de te abraçar.
Deixava-mos a nossa ligação tomar conta de tudo e esquecíamos daquilo que era essencial, as ligações não duram para sempre quando não cuidamos delas e nós tínhamos deixado de cuidar da nossa à muito e ainda não tínhamos reparado que ela estava quase a partir. Tentei com força agarra-la tal como tu também tentaste e para mantermos a telepatia viva só juntos o íamos conseguir, para não deixar o comboio parado na estação, para não deixar cair a ponte que estávamos a atravessar, tínhamos que conseguir juntos. Era tarde de mais, não conseguimos.

O outro lado


Estavas sentada junto à janela com os braços sobre o papel onde escrevias. O dia que nascera não me deixava ver as cores que ostentavas porque os meus olhos só captavam a luz do sol. As pernas cruzadas, o cabelo solto, os movimentos suaves que fazias para deslocar o lápis e desenhar um mundo encantado, tudo isto contribuía para me fascinares e cativares a atenção. Eram gestos sem importância, mas a maneira como tu os conjugavas transformava-te numa princesa escondida por entre as muralhas de um castelo. Vivias serena como se nada te perturbasse e até a tua respiração transpirava calma, a mesma calma que tem um canário quando canta seguro no poiso. O sol que enchia a sala aquecia o ambiente e eu sentia o leve cheiro a Verão. Os raios que batiam nas minhas mãos transmitiam uma sensação de conforto que aposto que experimentavas tal como eu. Levantas-te sem ninguém o prever para baixar a persiana e ficaste finalmente exposta ao meu olhar, podia agora distinguir a cor vermelha do teu vestido e os olhos castanhos que brilhavam na tua face. Sem o sol que tinha enchido a sala até então deixei de sentir o conforto que tanto estava a gostar, mas os benefícios de agora não existirem barreiras entre o meu olhar e o teu corpo eram suficientes para compensar todos os danos. Voltaste a sentar-te de volta ao teu espaço, voltaste a pegar no lápis negro e seguiste o traço escrito na folha enquanto me concentrava para descobrir os teus contornos e durante tempo infinito ali fiquei. Durante esse tempo deste-me o perfil do teu rosto e eu acreditei que era todo feito da mesma pele. Deste-me o teu pé direito e eu acreditei que o outro também sabia dançar. Deste-me a tua orelha direita e eu acreditei que a outra também sabia ouvir. Deste-me a tua mão direita e eu confiei que a outra também sabia abraçar. Deste-me a tua perna direita e eu acreditei que a outra também sabia correr para mim. Não me deste o teu coração, infelizmente ele estava do lado escondido, o esquerdo.

Culpa


Deixei cair a noite para saber até quando conseguias manter as tuas mentiras intactas, calado, triste, sem esperança de saber a verdade pela tua boca. A noite continuava a cair até ao ponto em que já estava totalmente enraizada dentro de mim, até ao ponto em que as trevas que trazia já faziam parte do meu respirar, mas a tua mascara seguia fixa Á tua cara e não parecia ter vontade de cair.
Há dias em que nunca nos sentimos bem com aquilo que somos, era um desses dias e qualquer pessoa que me dissesse o contrário era para mim uma imagem vazia. Perdia a vontade de estar acordado, deixava o silêncio apoderar-se de mim, queria dormir. Sozinho, alegre e triste ao mesmo tempo, era assim que a culpa, tua ou minha, se apoderava de mim. Em ti não sei que efeito causava, mas a última coisa que espero que sintas é indiferença porque essa já a dei aos meus olhos por eles estarem farto de responder a perguntas.
Encontrei no teu olhar o gelo da tua culpa, e perdi o calor do teu arrependimento no entanto, não ia ficar à espera da tua confissão. Procurei um espelho para ver quem era e no que estava transformado. Desejei contemplar o mesmo que estava acostumado. Ansiei que a mudança fosse nula. Tive medo do que podia descobrir, mas o sentimento de incerteza estava a corroer os meus sentidos.
Encontrei finalmente. Agoniei antes de ver a imagem. Vi. Estava lá. O meu sorriso, esse mesmo que me acompanha. Porque alguém me disse, “Enquanto alguém te faz sorrir ninguém te pode fazer chorar”.

Distância

Corres, foges, afastas-te do medo que te persegue como o sol foge da lua todas as noites e a lua foge do sol todas as manhãs. Temos medo de tudo o que é desconhecido, de tudo o que não queremos conhecer e de tudo o que não queríamos ter conhecido. Dois destes motivos para fugir não consegues controlar, mas o medo das coisas que já conheces é o que cria a maior distância entre o teu coração e as minhas mãos.
Continuaste a correr sem direcção, só pensavas em desaparecer o mais rápido possível e nunca olhar para trás. Nem te lembraste que talvez não fosse preciso correr e fugir, bastava transformar o medo em indiferença, a indiferença em tolerância e a tolerância em compaixão. Seguiste em frente, dobraste a curva com o desejo de não ter um desgosto devido ao que podia estar do outro lado. Ansiaste que quem te seguia te perdesse o rasto.
Do lado dessa esquina estava uma estrada que parecia não ter fim. Não sabias, mas a única saída que essa rua te proporcionava era a queda num precipício, mas o medo era demasiado para te permitir regressar. O cansaço nos teus olhos e o suor no teu rosto denunciavam a falta de forças que o teu corpo já sentia mas mesmo assim havia uma razão mais forte que tudo para te fazer andar. Agora andas, embora ainda tenhas vontade de correr, porque os teus membros já atingiram o limite.
Os cheiros e as cores dessa jornada eram agora mais nítidos e passavas por eles muito mais lentamente o que fazia com que realmente entendesses o seu significado, de que estavas distante de tudo. Paraste. Estavas ofegante e compreendeste finalmente, não eras tu que te tinhas estado a afastar de todo o mundo, era todo o mundo que tinha sido afastado por ti.

Feitiço


Voltaste-te de frente e o sorriso no teu rosto era inconfundível. Estavas feliz e preenchias o teu corpo com essa satisfação de maneira a que todos a contemplassem e não tivessem dúvidas. Nunca te tinha sentido da forma que estavas hoje, até o perfume que usavas tornava o ar mais doce, até a simples suavidade do teu cabelo molhado me dava motivos para não deixar de te admirar, até o som das tuas gargalhadas fazia em mim o efeito que faz uma flor a uma abelha.
Os teus paços firmes fazem ecoar o som dos teus saltos por entre os labirintos e as gavetas da minha cabeça, as formas do teu corpo fazem desenhos nos quadros da minha alma que a cor dos teus olhos se encarrega de pintar. Não me consigo defender disso, tu entras sem pedir licença e não sais porque eu quero que fiques.
Trocamos sorrisos e olhares tal como dois seres apaixonados trocam cartas de amor, mas nunca passaram de momentos instantâneos e comuns às nossas faces, entrelaçados, finitos. Entrelaçaste o teu sorriso com o teu olhar, mais tarde juntaste-lhes um toque da tua voz e um pozinho do teu sabor e deixaste o mundo à tua volta enfeitiçado. Esse feitiço duradouro deixou-me mais facilmente seduzido.
Por instantes, pareceu ter cativado os teus instintos. Mas cada vez que voltas as costas deixas de enfeitiçar o ar que te rodeia e quebras a magia que me lançaste. É nessa altura que consigo acordar do meu sono e ter a capacidade de reconhecer que o teu feitiço não era para mim, tu enfeitiças tudo aquilo em que tocas.

Envelhecer


Lembro-me dos dias em que trazias um banco, e para ele subias a muito custo, para chegar às gavetas da secretária ou aos livros das estantes. Tinhas o dom de fazer rir simplesmente com as tuas asneiras tal como conseguias passar por baixo da mesa com uma agilidade de um felino jovem que brinca por entre o arvoredo.
Adoravas os baloiços e os escorregas que tantas nódoas negras te ofereceram. Nunca te cansavas de correr e saltar, gritar, rir, andar de bicicleta, bicicleta essa que te fez cair inúmeras vezes só por vingança de lhe teres retirado as rodinhas pequenas.
Mais tarde, quando já deixaste de correr para andar, apreciavas os prazeres da vida de uma maneira única. Sentias cada sorriso das pessoas que amavas como se fosse teu, e cada lágrima como se te saísse do olhar. Não vacilavas porque tinhas força para aguentar tudo o que se metia no teu caminho e para te levantares depois de uma derrota. Mesmo nos dias maus voltavas-te para mim e dizias que o sol voltaria amanhã para nos acordar e na altura não acreditava em ti, mas mais tarde acabava por concordar. Soubeste que se pode amar alguém mais que a própria vida e que o mundo lá fora está sempre pronto para agitar aquilo que estavas a construir.
Depois de teres finalmente construindo o teu império era hora de descansares. Foram as pantufas o calçado que mais utilizaste durante as noites frias de inverno em que te aquecias à lareira. Permitiste que te aparecessem rugas à flor da pele e cabelos, brancos, por entre os poucos negros que iam restando.
Agora vejo eu aquilo que passou na tua vida durante todos estes ano, tudo o que o vento te trouxe e logo te levou no momento seguinte, todos os sorrisos que me deste e o mundo que me oferecias quando estavas feliz. As rugas profundas marcam o teu rosto como a experiência marca a tua alma, a experiência de quem tem muito para ensinar.
Começaste a correr, passaste a andar, acabaste sentado no teu trono que tanto trabalho deu a construir e se for preciso fico parado ao teu lado para sempre só para te dizer que não estas só.

Palavra



Pensa numa palavra, faz uma frase, lê um parágrafo, grita um poema, escreve m livro, constrói um mundo, vive uma vida. Não sei que palavra pensaste quando te pedi que o fizesses mas sei que, qualquer que tenha sido, a escolheste porque sentias falta de a dizer.
Não penses qual vais escolher, em vez disso escolhe a que estas a pensar. Enquanto penses deixas que o fictício se apodere de ti e isso não é o que espero ouvir da tua boca. Sente, escolhe e fala.
Gostava de ter o poder para entrar pelo teu olhar em direcção aos teus pensamentos porque, afinal de contas, os olhos são as janelas da mente e sabem que palavra foste escolher. Encobres os sinónimos dos teus sentimentos por trás dos teus gestos tal como escondes as tuas palavras no cristalino do teu olhar para que ninguém descubra as vontades que confinas no espírito.
Assim é difícil encontrar uma fenda na tua muralha atrás da qual te escondes durante as manhãs que te vejo sorrir e as noites que não te vejo nem te oiço chorar. Quero ouvir-te chorar, quero que cada lágrima tua signifique uma letra da minha palavra. Quero ver-te sorrir, quero que cada sorriso teu seja uma frase para eu usar. Quero ver-te saltar e brilhar, quero que cada salto seja um momento para me inspirar. Quero ver-te olhar, quero que cada olhar seja um mundo para me fazer viver.
Um mundo vale muito mais que uma palavra por isso guarda as lágrimas e encontra o brilho que tens escondido dentro de ti, pois o mundo já tu constróis só por existires.

Silêncio


Fiquei quieto quando gritaste com toda a tua força e quase me espremeste dentro do meu corpo. Continuavas a gritar e toda a tua alma estremecia como as folhas de uma laranjeira num dia ventoso de inverno mas nem isso te fez parar de gritar. Paraste quando te faltou o ar e respiraste.
Depois ficou o silêncio entre os raios de sol que nos separavam naquela manhã bonita de Dezembro. Ninguém foi capaz de fazer soltar mais uma simples palavra da boca para quebrar aquele momento e o silêncio prolongou-se para lá do infinito. Estavas ofegante depois de tanto esforço, no entanto o teu olhar penetrava em mim como quem acaba de acordar e tem um “bom dia” para oferecer, um olhar que me transformou em estátua imóvel que queria dar um passo em frente mas estava congelada.
Continuava o silêncio, mas já não me sentia congelado porque o teu olhar me tinha aquecido e dado vida. O teu olhar, o teu rosto, os teus lábios, as tuas mãos, tu estavas a possuir-me com a tua beleza sem te aperceberes do poder que encerravas. Olhei-te e, desta vez, o sol, que entrava pela janela e nos separava, estava agora atrás de ti para me deixar apenas vislumbrar os teus contornos. Era o suficiente para ter a certeza que queria estar perto de ti.
Continuava o silêncio mas agora estava na hora de me mexer. O teu olhar atraia-me como um doce atrai uma criança e não tive escolha, fizeste-me perder o controlo que o silêncio me tinha conferido. Mexi-me, toquei-te, abracei-te com força e finalmente o silêncio terminou. Agora conseguia ouvir o som do bater do teu coração.