O som do Mar


A brisa fresca é premonitória de mais um dia de outono soalheiro à beira mar. Aqui a brisa é diferente, tem um cheiro inconfundível, tem um sabor distinto do outro ar que circula em qualquer outro lugar. Esta brisa é a brisa que vem do mar.
Um dia quero contar quantas gotas de água cabem dentro de ti. Acho que uma boa estimativa seria dizer muitas, mas a verdade é que quero ter mais certezas para poder descrever o tamanho daquilo que vejo. A cor azul das tuas ondas gela a minha presença minúscula junto à fronteira que delimitas. Fronteira que vai e vem ao ritmo da tua vontade e da força da Lua. És enorme, tão grande que nenhum Homem ousou descrever onde começas e onde acabas. És enorme e o melhor sítio para quem quer esconder um segredo porque os teus murmúrios serão sempre imperceptíveis.
Sentada à beira, em contra luz do pôr-do-sol, consigo distinguir a tua silhueta. Com o cabelo apanhado consegues serrilhar a luz que não atravessa o teu corpo, construindo castelos de sombras, longos, por entre os grãos serenos de areia. É fácil saber que és tu. Conheço esse olhar meigo compenetrado no infinito, procurando o que está do outro lado do horizonte, para lá da curva da Terra. Tanta concentração faz-me querer que sonhas em ter asas e voar, atravessar o oceano num bailado de movimentos doces para encontrares o que foi escondido para lá do que a vista alcança. Ter poder para saltares de ilha em ilha a teu belo prazer ou caminhar sobre a água para matares as saudades de casa.
O sol, quente, a brisa, fria. Criam no teu rosto um misto de sensações. O mar, suave, a terra, rígida, criam no teu coração os sentimentos que murmuras aos meus ouvidos, tal como o som do mar sussurra os segredos que lhe foram confiados. A ondulação molha os teus pés ciclicamente arrefecendo os teus sentimentos, fechando as tuas feições belas para dentro de ti mesmo e dirigindo o teu olhar para a areia. Grito para continuares a olhar em frente porque quando prendes os teus olhos no espelho de água eles brilham com o reflexo de luz e enfeitiçam o meu mundo.
Estou longe, no limiar mal definido de onde acabam as rochas e começa a areia, mas consigo sentir a brisa do mar a ser dulcificada pela tua presença e o ouvir som das ondas formando uma melodia ao teu compasso. Para ti, o mar já não parece enorme. Ao teu lado parece minúsculo porque o conheces tão bem como a ti própria, porque ele, é apenas uma parte de ti.

Crime


Ainda hoje penso sobre o crime que cometi. Longos anos passados mas ainda estão presentes memórias, não esquecidas, desse dia. Agora, relembro-as, abraçado à escuridão e ouvindo o chorar da chuva que bate nas caleiras. Era um dia equivalente ao que hoje vivo, frio, triste, o dia perfeito para conceber as acções das quais hoje me arrependo.

Os impulsos, instintos animais, tomaram conta dos meus movimentos. Tentava resistir com todo o meu vigor mas, mesmo assim, todos os esforços foram em vão. A força da natureza tem tanto poder sobre a nossa íntegra consciência que não conseguimos resistir. Deixei-me ir, sem vontade para opor-me, mesmo sabendo o que estava prestes a acontecer. Não queria voltar para trás, não queria deter as minhas mãos, não queria prender o meu coração.

Tinha obrigação mas não sou capaz de recordar os pormenores desse momento tão marcante. Durante noites tive sonhos e pesadelos com a expressão do teu olhar naquele momento. O poço sem fundo que eram os teus olhos, o sorriso rasgado pelo teu rosto e a tua pele quente de desassossego tornaram aquele momento tão mais prazeroso que não soube como reagir. O crime ficou apenas consumado por metade.

As razões para o incompleto nem sempre parecem claras depois de tanto tempo. Se muitas coisas podem mudar apenas num segundo, muitas mais mudam certamente numa vida. As minhas mudaram tão rápido que não tive tempo de guardar uma recordação e apenas guardei um arrependimento. Tu estavas lá, viste o que eu vi e eu vi o que tu viste. Ouviste. Sentiste. Aconteceu. Tu foste minha cúmplice, aliada e parceira. Sem reacção aos meus gestos e, ainda, incentivando os meus actos. A partir desse dia ganhei um peso na consciência e uma marca no coração e espero que tu também.

Coisas do inverno


Faltam 38 dias para começar o inverno e, infelizmente, os dias quentes de outono, como o de hoje, fizeram-me lembrar disso. São típicas as normais depressões de inverno que tantos dizem cair durante os dias de frio e de poucas horas de sol. A verdade é que, em certa medida, gosto do inverno. Os dias ventosos que obrigam ao dobro do esforço para andar contra o vento, o frio de rachar em que dá vontade de abraçar aquela pessoa especial para nos aquecer a mão, para nos aquecer o coração.

Não sinto, ao contrário de outros, a necessidade de chamar pela altura do ano que faz subir os termómetros. Os dias, quando mais pequenos que as noites, também têm o seu encanto. Só nessa altura conseguimos reparar como é bom o bater do sol que aquece a nossa pele nas horas matutinas sobre a gélida Terra que mal teve tempo para acordar. Fugimos das sombras quando está sol e do céu aberto quando está a chover. As corridas para não apanhar uma molha que, no final, são sempre motivo de sorrisos.

É fácil entender porque conto os dias para chegar o inverno. Os fins de semana de preguiça no sofá envolto nas mantas. O chocolate quente em frente à lareira, as castanhas assadas, e o cheiro a lenha queimada a pairar no ar. Se há cheiro que me lembre o inverno é o do fumo escuro saído das chaminés. Tenho um novo natal (embora muita da magia já tenha sido perdida) por causa de duas crianças que alegram qualquer momento e nunca deixam que os sorrisos desapareçam. As manhãs passadas na cama quando se consegue ouvir a chuva a bater na janela. As tempestades nocturnas que iluminam os céus com a força dos relâmpagos e petrificam os corpos com o som dos trovões. O casaco pesado que sabe tão bem vestir quando se abre a porta da rua. As esplanadas desertas onde finalmente posso escolher o melhor lugar para tomar a bica que me aquece o corpo e a mente.

Não me chateio com o inverno, basta aproveitar os pequenos prazeres que podemos extrair dele. Porque não tem que ser sempre inverno e não pode ser sempre verão.


Sangue do meu sangue

Vão longes os tempos em que o teu choro deixou de mover-me todas as noites. De olhos abertos, por entre a escuridão, ouvindo o teu sofrimento em forma de som e não entendendo o porque. Com os teus olhos ensopados e a pele enrugada de bebé usavas do teu único instrumento de alerta para chamar a atenção, o choro sempre presente ecoava pelos corredores serenos e propagava a tua dor até aos nossos corações.

A luz acesa à cabeceira escorria pelas frestas da porta entreaberta. O medo do escuro não te deixava sossegar e querias sempre que a noite se transformasse no dia que ia afastar os teus pesadelos. Tão pequeno, tão frágil que me fazias pensar como era possível existir vida dentro de ti.

Só o colo, os abraços, e o som dos outros faziam o teu corpo sentir-se confortável e calmo. Tinhas ar de quem se sente desprotegido e não quer ficar só. Tens ar de quem se sente desprotegido e não quer ficar só. Eras frágil como as folhas que caem no outono à passagem da mais leve brisa, mas agora a posição bípede que ostentas faz-te parecer mais forte e móvel do que antes.

Acabaram os dias de sonos infinitos, de noite e de dia, sonhando com mundo indescritíveis, com abstractos de vontades inconcretizáveis ou simplesmente planeando o próximo dia de vida. Sim! Sonhar é poder dizer que se está vivo. Hoje o choro acabou e crescem em ti os vastos pensamentos que ditarão o ser que serás. Hoje, as vontades sonhadas já podem ser concretizadas.

As corridas em que sempre queres ter companhia deixam o teu corpo cansado e a tua mente feliz. O corpo pequeno que perde o fôlego tão devagar quanto o meu e me deixa a pensar qual a energia que plantaram dentro de ti. És sangue do meu sangue, são sangue do meu sangue. Serão as paixões da minha vida cada vez que entrarem no meu mundo, com os vossos sorrisos, com os vossos abraços tão inocentes e ternurentos. São vocês que eu quero ver a partir do outro mundo porque enterrar um pai magoa muito, mas enterrar um filho magoa muito mais.

Nasceste e estás a crescer, mas não estás só, nunca vais estar. Contigo trouxeste mais uma alma. Essa ainda chora, não fala, mas já ri. Hoje são os vossos risos que se propagam dentro do meu coração.