Solto-te

A luz que entra pelos teus olhos faz-me reparar no brilho que as tuas íris soltam ao expandirem-se para te proteger. Esse brilho, capaz de acender os candeeiros plantados nas bermas do meu caminho agora serve para iluminar as paredes do meu quarto, reflectindo-se no espelho, aquecendo o encosto em que me deito. Não me deixas dormir porque a brisa arrasta o teu perfume mélico em direcção ao meu rosto discreto como a areia que se levanta à beira mar num dia de outono.

Deitada de olhos abertos e coração fechado aprisionas a minha atenção e desfrutas da minha insciência em relação ao teu mundo, às tuas intenções. Apenas sorris para esconder as sensações que, em outros momentos, seriam facilmente discerníveis. Suaves são as linhas que percorrem o teu corpo, visíveis em contra-luz e perfeita é a junção dos teus lábios reflectidos na janela a quando da lenta passagem de uma qualquer nuvem insípida.

Inesperadamente decides levantar-te e caminha sobre os tapetes amenos  onde passeais, pé ante pé, usando e abusando da sensualidade que te foi conferida. Dás a volta ao quarto, acariciando o fundo da cama feito de madeira escura com as tuas mãos delgadas até que, finalmente, me vens confrontar.

Agarro-te, abraço-te e, logo que caio em mim, solto-te. És apenas um sonho.




Cansado

A cabeça pesada, o corpo dorido, as mãos quentes. Isto é apenas a primeira face do cansaço. Aquilo que mais pesa é certamente a mente. Luzes, brancas que ofuscam os meus sentidos e cegam as minhas razões. O nojo dos meus sentidos que já para nada servem, que nem me conseguem levar a encontrar a saída. Perdido de sentidos, é hora de esquecer o que aprendi.

Aprendi que o tempo ajuda a esquecer. Mas aqui não tenho tempo, aqui não quero esquecer, quero encontrar, seja com a razão, seja com o instinto. Fica o instinto para me guiar mesmo quando o cansaço faz perder a verdade.

Verdade que não preciso quando existe um chamamento de maior força para me levam ao fim do caminho. Não te consigo ver nem tocar, mas consigo sentir que existes e isso basta-me para sair a procurar-te. A vontade diz-me que não estás longe e a verdade nada me diz, porque há muito que não existe, há muito que parou de me deixar confuso.

Confuso é diferente de perdido. Aquele que está perdido tem noção de onde quer chegar. Aquele que está confuso nem sabe o sítio em que está. Estou perdido mas não confuso. Estou cansado mas não morto.

Morta está a razão, vivo está o instinto. Instinto que me vai levar até ti.


A Cave


Dos confins do universo saís todas as manhãs com o espírito selvagem que te conheço. Os teus toques de força ficaram gravados no momento do teu nascimento, que aconteciam todos os dias quando a luz resolvia brindar o teu sossego. A tua imagem ficou presente na minha memória, de olhos raiados e garras de fera conseguias provocar-me o medo de quem enfrenta o desconhecido. Não aguentava mais esta sensação de correr para fugir, de viver para sofrer.

Hoje sou eu que nasço da minha cave mesmo que a luz não me venha acordar. Acabou a supermacia dos teus sentidos e o controle dos meus sentimentos. A metado do meu espírito que te pretencia passou a ser terra de ninguém. Finalmente sou liberto, não foi de ti que recebi a liberdade nem a alforria mas os dias de escravidão sobre a tua demanda chegaram ao fim.
As correntes enfraquecidas pela ferrugem são agora fáceis de quebrar, e mesmo que leve o teu perfume comigo já não levo a tua prisão. O tempo de perdição cravou marcas sobre a minha pele que já mais serão apagadas.

Já não te peço, não te louvo, não te idolatro. Não me podes encontrar, agora já não estou perdido na tua cave. Agora o fim do túnel é a minha demanda e à saída já sei o que tenho à espera.