Ligação


Hoje de manha acordei para apanhar outra vez o comboio como uma criança que vai pela primeira vez em uma visita de estudo. Empolgado, nervoso, entusiasmado porque sabia que ias estar à minha espera no fim da linha. Esse espaço era a última coisa que me separava de ti mas era demasiado grande para ser sustentado durante todos os dias em que não acordava deitado a teu lado.
Liguei-me a ti. A tua voz fluía para dentro de mim por paços mágicos como os sons das cordas de uma guitarra prosseguem pelo ar sem que ninguém os veja mas todos os ouçam. Mesmo quando estas longe eu consigo sentir-te como se descansasses o teu rosto no meu ombro. Não sei porque, mas estou ligado a ti de uma forma estranha e da qual não me quero libertar.
Era essa ligação invisível que criei, que criamos e que ninguém era capaz de explicar, que me fazia sorrir pela manhã mesmo nos dias em que não apanhava esse comboio para te tocar. Não era preciso. Chegava-me os pensamentos partilhados entre ambos e os sonhos que alimentava com a tua a falta da tua presença e com a vontade de te abraçar.
Deixava-mos a nossa ligação tomar conta de tudo e esquecíamos daquilo que era essencial, as ligações não duram para sempre quando não cuidamos delas e nós tínhamos deixado de cuidar da nossa à muito e ainda não tínhamos reparado que ela estava quase a partir. Tentei com força agarra-la tal como tu também tentaste e para mantermos a telepatia viva só juntos o íamos conseguir, para não deixar o comboio parado na estação, para não deixar cair a ponte que estávamos a atravessar, tínhamos que conseguir juntos. Era tarde de mais, não conseguimos.

O outro lado


Estavas sentada junto à janela com os braços sobre o papel onde escrevias. O dia que nascera não me deixava ver as cores que ostentavas porque os meus olhos só captavam a luz do sol. As pernas cruzadas, o cabelo solto, os movimentos suaves que fazias para deslocar o lápis e desenhar um mundo encantado, tudo isto contribuía para me fascinares e cativares a atenção. Eram gestos sem importância, mas a maneira como tu os conjugavas transformava-te numa princesa escondida por entre as muralhas de um castelo. Vivias serena como se nada te perturbasse e até a tua respiração transpirava calma, a mesma calma que tem um canário quando canta seguro no poiso. O sol que enchia a sala aquecia o ambiente e eu sentia o leve cheiro a Verão. Os raios que batiam nas minhas mãos transmitiam uma sensação de conforto que aposto que experimentavas tal como eu. Levantas-te sem ninguém o prever para baixar a persiana e ficaste finalmente exposta ao meu olhar, podia agora distinguir a cor vermelha do teu vestido e os olhos castanhos que brilhavam na tua face. Sem o sol que tinha enchido a sala até então deixei de sentir o conforto que tanto estava a gostar, mas os benefícios de agora não existirem barreiras entre o meu olhar e o teu corpo eram suficientes para compensar todos os danos. Voltaste a sentar-te de volta ao teu espaço, voltaste a pegar no lápis negro e seguiste o traço escrito na folha enquanto me concentrava para descobrir os teus contornos e durante tempo infinito ali fiquei. Durante esse tempo deste-me o perfil do teu rosto e eu acreditei que era todo feito da mesma pele. Deste-me o teu pé direito e eu acreditei que o outro também sabia dançar. Deste-me a tua orelha direita e eu acreditei que a outra também sabia ouvir. Deste-me a tua mão direita e eu confiei que a outra também sabia abraçar. Deste-me a tua perna direita e eu acreditei que a outra também sabia correr para mim. Não me deste o teu coração, infelizmente ele estava do lado escondido, o esquerdo.