Culpa


Deixei cair a noite para saber até quando conseguias manter as tuas mentiras intactas, calado, triste, sem esperança de saber a verdade pela tua boca. A noite continuava a cair até ao ponto em que já estava totalmente enraizada dentro de mim, até ao ponto em que as trevas que trazia já faziam parte do meu respirar, mas a tua mascara seguia fixa Á tua cara e não parecia ter vontade de cair.
Há dias em que nunca nos sentimos bem com aquilo que somos, era um desses dias e qualquer pessoa que me dissesse o contrário era para mim uma imagem vazia. Perdia a vontade de estar acordado, deixava o silêncio apoderar-se de mim, queria dormir. Sozinho, alegre e triste ao mesmo tempo, era assim que a culpa, tua ou minha, se apoderava de mim. Em ti não sei que efeito causava, mas a última coisa que espero que sintas é indiferença porque essa já a dei aos meus olhos por eles estarem farto de responder a perguntas.
Encontrei no teu olhar o gelo da tua culpa, e perdi o calor do teu arrependimento no entanto, não ia ficar à espera da tua confissão. Procurei um espelho para ver quem era e no que estava transformado. Desejei contemplar o mesmo que estava acostumado. Ansiei que a mudança fosse nula. Tive medo do que podia descobrir, mas o sentimento de incerteza estava a corroer os meus sentidos.
Encontrei finalmente. Agoniei antes de ver a imagem. Vi. Estava lá. O meu sorriso, esse mesmo que me acompanha. Porque alguém me disse, “Enquanto alguém te faz sorrir ninguém te pode fazer chorar”.

Distância

Corres, foges, afastas-te do medo que te persegue como o sol foge da lua todas as noites e a lua foge do sol todas as manhãs. Temos medo de tudo o que é desconhecido, de tudo o que não queremos conhecer e de tudo o que não queríamos ter conhecido. Dois destes motivos para fugir não consegues controlar, mas o medo das coisas que já conheces é o que cria a maior distância entre o teu coração e as minhas mãos.
Continuaste a correr sem direcção, só pensavas em desaparecer o mais rápido possível e nunca olhar para trás. Nem te lembraste que talvez não fosse preciso correr e fugir, bastava transformar o medo em indiferença, a indiferença em tolerância e a tolerância em compaixão. Seguiste em frente, dobraste a curva com o desejo de não ter um desgosto devido ao que podia estar do outro lado. Ansiaste que quem te seguia te perdesse o rasto.
Do lado dessa esquina estava uma estrada que parecia não ter fim. Não sabias, mas a única saída que essa rua te proporcionava era a queda num precipício, mas o medo era demasiado para te permitir regressar. O cansaço nos teus olhos e o suor no teu rosto denunciavam a falta de forças que o teu corpo já sentia mas mesmo assim havia uma razão mais forte que tudo para te fazer andar. Agora andas, embora ainda tenhas vontade de correr, porque os teus membros já atingiram o limite.
Os cheiros e as cores dessa jornada eram agora mais nítidos e passavas por eles muito mais lentamente o que fazia com que realmente entendesses o seu significado, de que estavas distante de tudo. Paraste. Estavas ofegante e compreendeste finalmente, não eras tu que te tinhas estado a afastar de todo o mundo, era todo o mundo que tinha sido afastado por ti.

Feitiço


Voltaste-te de frente e o sorriso no teu rosto era inconfundível. Estavas feliz e preenchias o teu corpo com essa satisfação de maneira a que todos a contemplassem e não tivessem dúvidas. Nunca te tinha sentido da forma que estavas hoje, até o perfume que usavas tornava o ar mais doce, até a simples suavidade do teu cabelo molhado me dava motivos para não deixar de te admirar, até o som das tuas gargalhadas fazia em mim o efeito que faz uma flor a uma abelha.
Os teus paços firmes fazem ecoar o som dos teus saltos por entre os labirintos e as gavetas da minha cabeça, as formas do teu corpo fazem desenhos nos quadros da minha alma que a cor dos teus olhos se encarrega de pintar. Não me consigo defender disso, tu entras sem pedir licença e não sais porque eu quero que fiques.
Trocamos sorrisos e olhares tal como dois seres apaixonados trocam cartas de amor, mas nunca passaram de momentos instantâneos e comuns às nossas faces, entrelaçados, finitos. Entrelaçaste o teu sorriso com o teu olhar, mais tarde juntaste-lhes um toque da tua voz e um pozinho do teu sabor e deixaste o mundo à tua volta enfeitiçado. Esse feitiço duradouro deixou-me mais facilmente seduzido.
Por instantes, pareceu ter cativado os teus instintos. Mas cada vez que voltas as costas deixas de enfeitiçar o ar que te rodeia e quebras a magia que me lançaste. É nessa altura que consigo acordar do meu sono e ter a capacidade de reconhecer que o teu feitiço não era para mim, tu enfeitiças tudo aquilo em que tocas.