Envelhecer


Lembro-me dos dias em que trazias um banco, e para ele subias a muito custo, para chegar às gavetas da secretária ou aos livros das estantes. Tinhas o dom de fazer rir simplesmente com as tuas asneiras tal como conseguias passar por baixo da mesa com uma agilidade de um felino jovem que brinca por entre o arvoredo.
Adoravas os baloiços e os escorregas que tantas nódoas negras te ofereceram. Nunca te cansavas de correr e saltar, gritar, rir, andar de bicicleta, bicicleta essa que te fez cair inúmeras vezes só por vingança de lhe teres retirado as rodinhas pequenas.
Mais tarde, quando já deixaste de correr para andar, apreciavas os prazeres da vida de uma maneira única. Sentias cada sorriso das pessoas que amavas como se fosse teu, e cada lágrima como se te saísse do olhar. Não vacilavas porque tinhas força para aguentar tudo o que se metia no teu caminho e para te levantares depois de uma derrota. Mesmo nos dias maus voltavas-te para mim e dizias que o sol voltaria amanhã para nos acordar e na altura não acreditava em ti, mas mais tarde acabava por concordar. Soubeste que se pode amar alguém mais que a própria vida e que o mundo lá fora está sempre pronto para agitar aquilo que estavas a construir.
Depois de teres finalmente construindo o teu império era hora de descansares. Foram as pantufas o calçado que mais utilizaste durante as noites frias de inverno em que te aquecias à lareira. Permitiste que te aparecessem rugas à flor da pele e cabelos, brancos, por entre os poucos negros que iam restando.
Agora vejo eu aquilo que passou na tua vida durante todos estes ano, tudo o que o vento te trouxe e logo te levou no momento seguinte, todos os sorrisos que me deste e o mundo que me oferecias quando estavas feliz. As rugas profundas marcam o teu rosto como a experiência marca a tua alma, a experiência de quem tem muito para ensinar.
Começaste a correr, passaste a andar, acabaste sentado no teu trono que tanto trabalho deu a construir e se for preciso fico parado ao teu lado para sempre só para te dizer que não estas só.

Palavra



Pensa numa palavra, faz uma frase, lê um parágrafo, grita um poema, escreve m livro, constrói um mundo, vive uma vida. Não sei que palavra pensaste quando te pedi que o fizesses mas sei que, qualquer que tenha sido, a escolheste porque sentias falta de a dizer.
Não penses qual vais escolher, em vez disso escolhe a que estas a pensar. Enquanto penses deixas que o fictício se apodere de ti e isso não é o que espero ouvir da tua boca. Sente, escolhe e fala.
Gostava de ter o poder para entrar pelo teu olhar em direcção aos teus pensamentos porque, afinal de contas, os olhos são as janelas da mente e sabem que palavra foste escolher. Encobres os sinónimos dos teus sentimentos por trás dos teus gestos tal como escondes as tuas palavras no cristalino do teu olhar para que ninguém descubra as vontades que confinas no espírito.
Assim é difícil encontrar uma fenda na tua muralha atrás da qual te escondes durante as manhãs que te vejo sorrir e as noites que não te vejo nem te oiço chorar. Quero ouvir-te chorar, quero que cada lágrima tua signifique uma letra da minha palavra. Quero ver-te sorrir, quero que cada sorriso teu seja uma frase para eu usar. Quero ver-te saltar e brilhar, quero que cada salto seja um momento para me inspirar. Quero ver-te olhar, quero que cada olhar seja um mundo para me fazer viver.
Um mundo vale muito mais que uma palavra por isso guarda as lágrimas e encontra o brilho que tens escondido dentro de ti, pois o mundo já tu constróis só por existires.

Silêncio


Fiquei quieto quando gritaste com toda a tua força e quase me espremeste dentro do meu corpo. Continuavas a gritar e toda a tua alma estremecia como as folhas de uma laranjeira num dia ventoso de inverno mas nem isso te fez parar de gritar. Paraste quando te faltou o ar e respiraste.
Depois ficou o silêncio entre os raios de sol que nos separavam naquela manhã bonita de Dezembro. Ninguém foi capaz de fazer soltar mais uma simples palavra da boca para quebrar aquele momento e o silêncio prolongou-se para lá do infinito. Estavas ofegante depois de tanto esforço, no entanto o teu olhar penetrava em mim como quem acaba de acordar e tem um “bom dia” para oferecer, um olhar que me transformou em estátua imóvel que queria dar um passo em frente mas estava congelada.
Continuava o silêncio, mas já não me sentia congelado porque o teu olhar me tinha aquecido e dado vida. O teu olhar, o teu rosto, os teus lábios, as tuas mãos, tu estavas a possuir-me com a tua beleza sem te aperceberes do poder que encerravas. Olhei-te e, desta vez, o sol, que entrava pela janela e nos separava, estava agora atrás de ti para me deixar apenas vislumbrar os teus contornos. Era o suficiente para ter a certeza que queria estar perto de ti.
Continuava o silêncio mas agora estava na hora de me mexer. O teu olhar atraia-me como um doce atrai uma criança e não tive escolha, fizeste-me perder o controlo que o silêncio me tinha conferido. Mexi-me, toquei-te, abracei-te com força e finalmente o silêncio terminou. Agora conseguia ouvir o som do bater do teu coração.